Um dia, pouco antes de sua morte,
Guimarães Rosa me telefonou para conversar, como acontecia de vez em
quando, e bisbilhotou:
– Que é que você está fazendo?
Contei-lhe que estava no momento tentando
transformar um conto numa pequena peça de teatro. O grande
romancista, conforme já contei mais de uma vez e outros por mim, me
advertiu então com ar blandicioso:
– Não faça biscoitos: faça
pirâmides...
Na hora julguei entender o sentido lógico
desta metáfora. A primeira conotação que ela sugeria era de
dimensão, a segunda de duração – de ambas decorrendo um critério
de qualidade: um biscoito é pequeno, portanto desprezível – uma
pirâmide é monumental, portanto grandiosa; um biscoito é
consumível, logo efêmero – uma pirâmide é permanente, logo
eterna.
Não só a tal peça de teatro não saiu,
como a partir de então me senti esmagado pelo conselho do autor de
Grande sertão: veredas e Corpo de baile – duas
pirâmides, sem dúvida alguma. Que diabo eu podia pretender com meus
livros? Um crítico mais realista chegou, mesmo, a me expulsar da
literatura, afirmando numa revista que eu era inventor de um gênero
composto de pequenos escritos sem qualquer dimensão literária. Ou
seja: de biscoitos.
Passei a sonhar então com um romance de
no mínimo oitocentas páginas – ou vários romances em série,
dez, quinze, que fossem uma espécie de painel da vida contemporânea,
apresentado através da minha experiência vital – qualquer coisa
assim, gigantesca, piramidal – a minha pirâmide. Enquanto isso, ia
produzindo os meus biscoitos, sem aspirar para eles uma condição de
grandeza e perenidade.
Com o tempo, todavia, a coisa se
complicou um pouco: não apenas minha pirâmide não saía,
esfacelando-se em sucessivos biscoitos, como tomei consciência de
que nem só de pirâmides vive a literatura. A própria cultura
universal, desde a antiguidade clássica, se compôs de grandes
monumentos erguidos por Platão, Aristóteles e outros gigantes, mas
entre eles encontramos também os escassos fragmentos de Heráclito,
meros biscoitos e nem por isso menos preciosos.
Para ficarmos na prosa da ficção: se na
Rússia Tolstói, Dostoiévski e Gógol ergueram pirâmides, outros
grandes escritores fizeram seus biscoitos com igual sucesso, como
Púchkin, Tchekhov, Andreiev. Na França, se temos de um lado Balzac,
Proust, Stendhal, Rousseau, Victor Hugo, não sei se incluiria
Flaubert entre eles, ou de preferência na categoria de Montaigne, La
Fontaine, Voltaire, Maupassant, Merimée, Molière, e tantos outros
fazedores de biscoito. (Para não falar em pipoqueiros, como Jules
Renard.)
Sartre podia pretender estar entre os
primeiros, mas sem dúvida Gide e Camus se alinharam entre os
segundos. Na Inglaterra, a tradição das pirâmides foi seguida por
Dickens, Fielding, Thackeray, Charlotte Brontë, Jane Austen, mas
dificilmente uma Emily Brontë poderia ser mencionada entre eles. No
nosso tempo, Grahan Greene, por exemplo, veio produzindo seguidos
biscoitos com grande sucesso.
Se Joyce partiu para a pirâmide, Kafka
contribuiu para revolucionar a literatura moderna com os seus
biscoitos de absurdo.
Nos Estados Unidos, Melville ergue uma
pirâmide do tamanho de uma baleia, enquanto Poe e Mark Twain
fabricam seus biscoitos, uns de terror, outros de humor. John dos
Passos erige seu monumento à civilização americana, enquanto
Hemingway passa a vida tentando o seu sobre a guerra, para acabar
conquistando o prêmio Nobel depois de produzir sua obra-prima, um
biscoito: O velho e o mar.
E tem também o grande biscoiteiro Jorge
Luis Borges.
No Brasil, destaca-se a pirâmide erguida
por Euclides da Cunha. Em compensação, o maior de nossos
ficcionistas, Machado de Assis foi a vida inteira um emérito
fabricante de biscoitos – embora a sua obra, em conjunto, venha a
ser piramidal. Uma sucessão de pirâmides se prolongou até nossos
dias, com o próprio Guimarães Rosa, Gilberto Freyre, Octavio de
Faria, Erico Verissimo, Pedro Nava e suas memórias, Jorge Amado e a
sua obra regional, culminando com o excelente Tocaia grande.
Sem querer puxar a brasa para a minha
sardinha, no caso para os meus biscoitos: tão importantes como
expressão do romance moderno entre nós são também, por exemplo,
um Oswaldo França Júnior ou uma Clarice Lispector com os seus. Não
se falando nesses dois mestres do biscoito, um na crônica e outro no
conto, que vêm a ser Rubem Braga e Dalton Trevisan.
(Tudo considerado, não adianta sofismar
– aqui muito entre nós, Guimarães Rosa tinha razão: biscoito
pode ser muito gostoso, principalmente ao café pela manhã, mas bem
que deve ser glorioso subir numa pirâmide, para que, do alto,
quarenta séculos nos contemplem.)
Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula
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