— Se quer seguir-me, narro-lhe; não
uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente,
séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos,
esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém,
um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros
ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem
tenha ideia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto,
das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica.
Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.
Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada
acontece, há um milagre que não estamos vendo.
Fixemo-nos no concreto. O espelho, são
muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o
senhor crê-se com o aspecto próprio e praticamente imudado, do qual
lhe dão imagem fiel. Mas — que espelho? Há-os “bons” e
“maus”, os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas
honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade
ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos,
somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam.
Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas
objeções análogas, seus resultados apoiam antes que desmentem a
minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os
índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro,
os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca
atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos
das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos?
Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir
da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de
fenômenos sutis que estamos tratando.
Resta-lhe argumento: qualquer pessoa
pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho.
Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal ainda não realizado
com rigor, careceria de valor científico, em vista das
irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás,
fazê-lo, e terá notáveis surpresas. Além de que a simultaneidade
torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo
é o mágico de todas as traições... E os próprios olhos, de cada
um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram
e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os
objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco
é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma
precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os
olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus,
não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao
latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de
tudo faz frincha para rir-se da gente... E então?
Note que meus reparos limitam-se ao
capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais —
côncavos, convexos, parabólicos — além da possibilidade de
outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo,
tetra ou quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese.
Matemáticos especializados, depois de mental adestramento, vieram a
construir objetos a quatro dimensões, para isso utilizando pequenos
cubos, de várias cores, como esses com que os meninos brincam.
Duvida?
Vejo que começa a descontar um pouco de
sua inicial desconfiança, quanto ao meu são juízo. Fiquemos,
porém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de diversões,
daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a mostrengos, esticados
ou globosos. Mas, se só usamos os planos — e nas curvas de um bule
tem-se sofrível espelho convexo, e numa colher brunida um concavo
razoável — deve-se a que primeiro a humanidade mirou-se nas
superfícies de água quieta, lagoas, lameiros, fontes, delas
aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal. Tirésias,
contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas
enquanto a si mesmo não se visse... Sim, são para se ter medo, os
espelhos.
Temi-os, desde menino, por instintiva
suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis
excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra,
diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite,
estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa
imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, porém,
positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com
fantásticas não-explicações? — jamais. Que amedrontadora visão
seria então aquela? Quem o Monstro?
Sendo talvez meu medo a revivescência de
impressões atávicas? O espelho inspirava receio supersticioso aos
primitivos, aqueles povos com a idéia de que o reflexo de uma pessoa
fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição
fecundo ponto de partida para a pesquisa. A alma do espelho —
anote-a — esplêndida metáfora. Outros, aliás, identificavam a
alma com a sombra do corpo; e não lhe terá escapado a polarização:
luz — treva. Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-los
contra a parede, quando morria alguém da casa? Se, além de os
utilizarem nos manejos da magia, imitativa ou simpática, videntes
serviam-se deles, como da bola de cristal, vislumbrando em seu campo
esboços de futuros fatos, não será porque, através dos espelhos,
parece que o tempo muda de direção e de velocidade? Alongo-me,
porém. Contava-lhe...
Foi num lavatório de edifício público,
por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado,
avistei... Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de
porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que
enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável
ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele
homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo
descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer
essa revelação?
Desde aí, comecei a procurar-me — ao
eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda
lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém
tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito
afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na
verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por
provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou
claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um
modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório,
mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um
perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu
próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não
impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei
meses.
Sim, instrutivos. Operava com toda a
sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, a
longa obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de
pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, os ângulos variados
incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência. Mirava-me,
também, em marcados momentos — de ira, medo, orgulho abatido ou
dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriram-se-me enigmas.
Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente
a sua imagem, o ódio reflui e recrudesce, em tremendas
multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia
é a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não
têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é
que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto,
o rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os demais, não vê
que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê,
porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem
desenvolver sequer as mais necessárias novas percepções. Não vê,
como também não se veem, no comum, os movimentos translativo e
rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés
assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me compreende.
Sendo assim, necessitava eu de
transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito
de devassar o núcleo dessa nebulosa — a minha vera forma. Tinha de
haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.
Concluí que, interpenetrando-se no
disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema
seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou anulamento
perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares,
grosseiras, ou de inferior significado. Tomei o elemento animal, para
começo.
Parecer-se cada um de nós com
determinado bicho, relembrar seu facies, é fato. Constato-o,
apenas; longe de mim puxar à bimbalha temas de metempsicose ou
teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater,
eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou
equinas, por exemplo, basta-lhe relancear a multidão ou atentar nos
conhecidos, para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior
na escala era, porém — a onça. Confirmei-me disso. E, então, eu
teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não
ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande
felino. Atirei-me a tanto.
Releve-me não detalhar o método ou
métodos de que me vali, e que revezavam a mais buscante análise e o
estrênuo vigor de abstração. Mesmo as etapas preparatórias dariam
para aterrar a quem menos pronto ao árduo. Como todo homem culto, o
senhor não desconhece a Ioga, e já a terá praticado, quando não
seja, em suas mais elementares técnicas. E, os “exercícios
espirituais” dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus
que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração,
de par com a imaginação criadora... Enfim, não lhe oculto haver
recorrido a meios um tanto empíricos: gradações de luzes, lâmpadas
coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade. Só a uma
expediência me recusei, por medíocre senão falseadora, a de
empregar outras substâncias no aço e estanhagem dos espelhos. Mas,
era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente
alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo. Sem ver o
que, em “meu” rosto, não passava de reliquat bestial.
Ia-o conseguindo?
Saiba que eu perseguia uma realidade
experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa
operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista
do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas,
quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já
aí, porém, decidindo-me a tratar simultaneamente as outras
componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário
— as parecenças com os pais e avós — que são também, nos
nossos rostos, um lastro evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no
ovo o pinto está intacto. E, em seguida, o que se deveria ao
contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que ressaltava
das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o
que, em nossas caras, materializa ideias e sugestões de outrem; e os
efêmeros interesses, sem sequência nem antecedência, sem conexões
nem fundura. Careceríamos de dias, para explicar-lhe. Prefiro que
tome minhas afirmações por seu valor nominal.
À medida que trabalhava com maior
mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo
clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de
boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, com uma esponja. E
escurecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com a saúde,
comecei a sofrer dores de cabeça. Será que me acovardei, sem menos?
Perdoe-me, o senhor, o constrangimento, ao ter de mudar de tom para
confidência tão humana, em nota de fraqueza inesperada e indigna.
Lembre-se, porém, de Terêncio. Sim, os antigos; acudiu-me que
representavam justamente com um espelho, rodeado de uma serpente, a
Prudência, como divindade alegórica. De golpe, abandonei a
investigação. Deixei, mesmo, por meses, de me olhar em qualquer
espelho.
Mas, com o comum correr quotidiano, a
gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é
sempre tranquilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade
me picasse. Um dia... Desculpe-me, não viso a efeitos de
ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações.
Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi
nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água
limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha
formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem
evidência física. Eu era — o transparente contemplador?...
Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.
Com que, então, durante aqueles meses de
repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exercitara!
Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente
me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada,
não se me espelhavam nem eles!
Tanto dito que, partindo para uma figura
gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total
desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma
existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado?
Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais
que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos
instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de
influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine?
Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho — com
rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não
muito mais que as crianças — o espírito do viver não passando de
ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a
memória.
Mas, o senhor estará achando que
desvario e desoriento-me, confundindo o físico, o hiperfísico e o
transfísico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou alinhamento
lógico — na conta agora caio. Estará pensando que, do que eu
disse, nada se acerta, nada prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade,
não seria mais que reles obsessão auto-sugestiva, e o despropósito
de pretender que psiquismo ou alma se retratassem em espelho...
Dou-lhe razão. Há, porém, que sou um
mau contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos, e, pois:
pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois.
Releve-me. E deixe que o final de meu capítulo traga luzes ao até
agora aventado, canhestra e antecipadamente.
São sucessos muito de ordem íntima, de
caráter assaz esquisito. Narro-os, sob palavra, sob segredo.
Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.
Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de
uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não
rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada
enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como
uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação,
radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em
minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para
deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor
mesmo.
São coisas que se não devem entrever;
pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude
distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí,
perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a
conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu
rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui.
Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo,
qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais
que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o
senhor nunca compreenderá?
Devia ou não devia contar-lhe, por
motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o
evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano —
intersecção de planos — onde se completam de fazer as almas?
Se sim, a “vida” consiste em
experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte —
exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que
obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto
mortale”... — digo-o, do jeito, não porque os acrobatas
italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos
as comuns expressões, amortecidas... E o julgamento-problema,
podendo sobrevir com a simples pergunta: — “Você chegou a
existir?”
Sim? Mas, então, está irremediavelmente
destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão
nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora,
sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os
reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo,
mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de
seus esbarros titubeados. Sim?
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias
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