sexta-feira, 9 de abril de 2021

Lindaura

Contam que o analista de Bagé não está muito contente com sua recepcionista Lindaura porque, segundo diz, “ela é como trigo: lindo de se vê, mas só dá uma vez por ano”. Mesmo assim, não a substitui porque a Lindaura “é esperta que nem gringo de venda” e sabe o que fazerem qualquer situação. Embora goste de dizer que “mulher só serve pra três coisas e pras outras duas tem diarista”, o analista de Bagé reconhece que deve até sua vida a Lindaura. Como no caso da prenda de botas.
Pues diz que entrou uma mulher no consultório pisando mais firme que delegado novo em chineiro. Abriu a porta num trancaço, parou com as pernas abertas e as mãos na cintura e gritou:
Buenas!
O analista de Bagé ficou de pé num salto de assustar cusco e também gritou, mais grosso ainda:
Buenas!
Ficaram os dois se estudando em silêncio. Aí ela levou a mão atrás e tirou uma faca do cinturão. O analista de Bagé pegou o facão, deu um chute no banquinho e recuou até a parede. Desafiou:
Vem que aqui tem homem. E da fronteira!
Mas a mulher pegou um rolo de fumo de dentro da bombacha e uma palhinha de trás da orelha. Começou a picar o fumo, olhando para o analista por baixo das sobrancelhas grossas.
Quero me analisá! – gritou.
Pos se apeie e deite no divã!
Ela olhou para o divã coberto com um pelego. Depois voltou a encarar o analista. Acabou de enrolar o cigarro e botou num canto da boca. Disse:
Não me deito pra homem nenhum.
Pos de pé eu só analiso cavalo.
Novo silêncio enquanto os dois se estudavam. Ela apontou para a ponta do palheiro e disse:
Tem fogo?
Pra mim mulher que pita, se não é francesa, é piguancha.
Francesa eu não sou.
já vi pelo sotaque.
E piguancha é a tua mãe.
Atracaram-se. Rolaram pelo chão. Ela acabou por cima, com um joelho sobre o peito do analista. Ele perguntou:
Como é que tu ficou desse jeito, tchê?
Um trauma.
Pois toma outro.
E acertou um manetaço no lado da cabeça dela. Ela rolou para baixo do divã.
Levantou com divã e tudo e veio, agora para liquidar. Foi quando o laço da Lindaura cruzou os ares e a imobilizou. O analista de Bagé e a Lindaura amarraram a mulher juntos, mas tiveram que chamar o zelador para colocá-la no divã. Sobravam trinta minutos para a análise, mas o analista cobrou os cinquenta, de vingança, porque ainda estava com a paleta dolorida.
Depois que a mulher saiu, ainda ouvindo os passo s das botas dela no corredor, o analista de Bagé, excitado com a briga, disse para a Lindaura:
Te deita no divã.
Mas a Lindaura não transigiu:
Só no Natal.

Luís Fernando Veríssimo, in O analista de Bagé

Nenhum comentário:

Postar um comentário