The other night I had a dream that I
was sitting on the sidewalk on Moody
Street, Pawtucketville, Lowell, Mass.,
with a pencil and paper in my hand
saying to my self ‘Describe the
]wrinkly tar of this side walk, also
the iron pickets of Textile Institute,
or the doorway where Lousy and you and
G.J.’s always sitting and don’t
stop
to think of words when you do
stop, just stop to think of the
picture better – and let your mind
off
yourself in this work.
Jack Kerouac, Dr. Sax
Na outra noite sonhei que estava sentada
no meio-fio com papel, lápis e assobios vazios me dizendo: “Você
não é Jack Kerouac apesar das assombrações insistirem em passar
nas bordas da cama exatamente como naquele tempo”. Eu era menina e
já escrevia memórias, envelhecida. O tempo se fazia ao contrário.
De noite não dormia enquanto meus olhos viam as luzes dos automóveis
velozes no teto. Quando me virava de bruços vinha o diabo e me
furava as costas com o punhal de prata. As mãos se interrompiam à
meia-noite quando chegava o anjo mais escuro que o silêncio. Não
havia mais sonho e eu e Jack brincávamos de paixão escondida.
O caso rendia por cima dos balcões. Eu
era rainha das cobras. Jack com sobrolho carregado e ar desentendido.
Ninguém devia saber de nada, nem a gente. Eu era a freira de nariz
arrebitado e boquinha vermelha. Jack doente e eu cui dava dele no
hospital. Me dá a mão. Ângela, segura a minha mão, ele falava
angustiado como se estivesse delirando. Eu segurava a mão dele
porque era irmã Paula mas Ângela não me chamava. Ele torcia meus
dedos e suava nos lençóis. Eu sentia um calor terrível, inquieta
na cadeira branca de ferro coberta de hábitos pretos. O colarinho
engomado pinicava. Com a outra mão eu pegava nos meus seios que não
eram grandes como a angústia de Jack.
Altas horas lá ia eu atender a luzinha
vermelha do quarto que piscava. De manhã Jack partia para sempre e
eu tinha calores na madrugada seguinte sem luzinha. Na confissão
virava Jack sofrendo na enfermaria e chamava Ângela de olhos
fechados. O confessor era careca e não dizia nada, suportava meus
dedos retorcidos entre as grades. Sozinha imitava o jeito de Jack
tirando livros da estante gravemente. Quando dava por mim estava
amparando a cabeça para não cair de sono igual ele fazia depois de
falar muito. Andava de perna meio aberta e batia a porta. O hábito
ficava preso no vão; eu não saía do lugar.
Nessa época começaram os bombardeios.
Tivemos que nos esconder todos dentro de um trem apagado no meio da
floresta. Tinha mais gente que espaço e todos deitavam no chão meio
embolados e tentavam descansar os peitos fatigados, os corações
exaustos, os olhares carregados etc. Jack vigiava os céus de insônia
por uma fresta no teto. Um homem gordo roncava aos meus pés. Ao lado
dele uma mulher carnuda se remexia. Não deitei tensa de medo de
fazer caridade pelos porcos. Jack barbado e cabeludo movia a cabeça
de um lado para o outro. Quando as explosões recomeçavam Jack se
atirava no chão e rolava por cima de seus protegidos até no meu
cantinho acocorado. A rainha das cobras era cruel com olhos
flamejantes. Capturava Jack na floresta e torturava com chicotes,
embebia feridas com água e sal. Não pessoalmente, mas comandando
soldados cabeçudos, barris de obediência. Na hora do aperto tinha
de aguentar os cheiros de Jack colados no meu braço. Dava as costas
e fingia que não sentia o aperto do perigo. Jack também me dava as
costas e as explosões sacudiam as paredes do trem. Ninguém podia se
mexer só se juntar mais e mais até os ossos estalarem, gemidos
imperceptíveis.
Jack me pegou desprevenida durante o
descanso vespertino. Subiu nas minhas costas e desceu a boca nas
dobras grudentas do pescoço. Não mexi e deixei que os dentes
trincassem preso o corpo todo. As mãos de Jack parece que entenderam
e vieram muito por cima pros meus peitos. As pernas de Jack
entenderam e mudas deram voo rasante pelas minhas. Meus dentes
seguraram: não me movi pela tesoura. Jack entendeu e não passou de
mariposa. Rasteiro se afastou e era como se tivéssemos dormido a
noite inteira sem reparos.
Finalmente a mulher carnuda acordou,
superiora, madre, dona dos soldados, dona da pensão. Quando Jack
subia nas costas dela não se dormia mais no casarão, no trem, no
hospital. Fiquei à escuta, tentei brincar de acordar sozinha, chamei
Ângela cortante, às tesouradas, touradas, trovoadas de verão,
punhal de prata. De fato recebi visitas discretas da nova enfermeira
de plantão, enfermeira de enfermeiras que contraíam a peste que
curavam. Ainda toda ouvidos só de insônias povoadas. Jack no coro
franzia a cara e só eu percebia na plateia; mas não mudo, não
falo, não mexo. Tinha suor, não tinha palmas.
Ana Cristina Cesar, in A teus pés
Nenhum comentário:
Postar um comentário