Vocês acham que Geppe Coppini é louco?
– Pois eu digo. Geppe Coppini é o
maior vivaldino que Anta Gorda já criou.
Seu Demétrio Zuffo abre bem os braços,
olha para os rostos estupefatos de seus interlocutores e dá seu
parecer. Todos em Anta Gorda têm algo a dizer sobre Geppe Coppini.
Todos. Geppe está para o município do Vale do Taquari como a unha
para a carne, a pétala para o miolo, a corda para a forca. Sim, ele.
Um certo Geppe Coppini.
Vou contar, então, a história desse tal
de Geppe. E quando eu terminar me digam vocês quem é, afinal, Geppe
Coppini.
Geppe é o mendigo, dizem. O único
mendigo de Anta Gorda. Mas não um mendigo qualquer. Inclusive,
pairam dúvidas sobre o fato de Geppe ser ou não ser um mendigo.
Mendiga era Riqueta, a bela Riqueta, tão bela que poderia ter sido
Miss Anta Gorda. Riqueta que se enamorou de um tal doutor Brandão, o
jovem médico da cidade, e enlouqueceu de amor. Voltou de uma sessão
de feitiços em Porto Alegre doida de atar. E desde então perambulou
pelo município seguida por um cortejo de cuscos. Numa madrugada,
daquelas madrugadas que só existem naquele vale, com as estrelas
escorregando pelos telhados, o barraco de Riqueta incendiou-se. Os
ossos encontrados pertenciam a seus cães. E até hoje a cidade vive
dobrada por esse mistério. Vive com esse ponto de interrogação
pendurado, como diz novamente seu Zuffo.
Geppe Coppini não. Geppe Coppini é uma
incógnita porque nunca pediu nada. Não há ninguém, em toda a Anta
Gorda, que possa afirmar que Geppe tenha pedido alguma coisa. O que
seria Geppe então? Dizem que um bambino como todos os outros da
Linha Terceira Moresco, nascido Josephino Coppini em 11 de novembro
de 1908. Pois até os dez anos, Geppe era apenas um gurizote de
calças curtas e pernas finas. Foi quando uma cigana de lábios de
cicuta apareceu naquela fatia importada da Itália. Todas as ciganas
são ameaçadoras para os descendentes de italianos, que vislumbram
no rodopio de suas saias a depravação da ordem do mundo. Dizem até,
madonna mia, que nem calcinhas usam. Pois essa, específica,
rogou uma praga para o menino Geppe, depois que seus pais a
expulsaram de suas terras. “Enquanto viver, esse guri nunca mais
terá bem.” Foi o que a mulher pronunciou com uma força de lei, os
olhos de gato faiscando.
E desde então Geppe mudou. Passou a
alisar o tronco das árvores com as mãos por horas a fio. E, ao
contrário da tropa de irmãos, decidiu que não trabalharia. Louco,
louco. O menino está variado, foi o que o povo disse. Foi despachado
para sanatórios na capital. Fugia e voltava a pé para o vale, um
passo atrás do outro com seus tamancos de madeira, uma parada aqui e
acolá para acariciar uma árvore conhecida. E a cidade, resignada,
foi se acostumando a Geppe Coppini.
Por quase todo esse século, Geppe
peregrinou pelas hortas e pelos pomares vivendo de verduras, frutas e
legumes. Dormiu no paiol das casas, aconchegado ao ventre das vacas.
Pelo menos fecha a porta, gritou certa feita à dona Rosa Tremea, que
escancarava o seu paiol para tirar o leite da malhada, sobressaltando
os estranhos sonhos de Geppe. Por último, carregou seus sustos para
o porão da casa de dona Nineta Contini, que o herdou da mãe, a
primeira a arrumar um canto da casa para Geppe, o variado.
Por quase todo esse século, Geppe não
perdeu um casamento, um enterro, uma comemoração de santo. Depois
que o vídeo desembarcou em Anta Gorda para registrar as festas,
Geppe aparece em todas as fitas. Ocupa o primeiro banco na igreja e,
quando chega a hora, tira do bolso um fiorin . Solene, o deposita na
cestinha da oferenda.
Quando passou dos 60 anos, um cidadão
conseguiu uma aposentadoria para ele. Geppe tem até carteira de
trabalho. Orgulhosamente em branco. Folha por folha. Essa foi a
primeira vez que algo realmente assombrou Geppe. O governo. E desde
então ele passou a repetir, em vêneto:
– Il goerno lé stupido! Gó mai
laorato in tutta la vita e ancora i me paga! (Tradução: “O
governo é um estúpido! Nunca trabalhei na minha vida e ainda assim
me paga!”)
Tempos depois, Geppe avistou um avião no
céu. E logo compreendeu. Só podia ser o governo. De olho nele,
Geppe. Passou um avião quando ajudava a cortar lenha na Linha
Moresco. Em seguida, passou o segundo. Geppe atirou o machado longe e
saiu batido. Antes, avisou:
– Se quiser cortar lenha, corta. Eu me
vou porque se o governo me descobre trabalhando me corta o soldo!
Fazer Geppe Coppini de bobo tem sido um
desafio para muitos antagordenses. Mais fácil os galos latirem.
Geppe lia o jornal de cabeça para baixo enquanto tomava um cálice
de vinho no bar – cheio, porque como ele diz, nhanca il diávolo
vuole mezo. (“Nem o diabo quer só a metade.”)
Geppe, lendo o jornal invertido?
– No correto qualquer bobo sabe ler –
foi a resposta lacônica.
Geppe jamais paga a passagem de ônibus
para Encantado. Ele simplesmente diz:
– Se eu não for, o ônibus vai deixar
de ir? Então, não preciso pagar.
Geppe costuma tomar sol na praça,
olhando inconformado para a estátua da anta, duas toneladas e meia
de banhas de concreto que um prefeito teve a iluminação de instalar
no dito logradouro. Parece um boi, comenta Geppe com os botões de
seu casaco de lã.
Geppe, pegando um sol? – arrisca um
aventureiro.
– O sol está muito longe para pegar –
responde ele, atônito com tão descabida pergunta.
Assim é Geppe Coppini. Que até hoje não
encontrou sentido numa coisa além do governo: o banho. Água apenas
para beber, e só quando falta o vinho. Ou o refrigerante. Ele adora.
Vamos tomar um banho, Geppe?
– Domani, domani.
De tempos em tempos, a cidade entende que
é hora de tomar uma atitude. Então, Algeri Toldo, o dono do hotel e
administrador da aposentadoria de Geppe, se prepara para a
empreitada. Dizem que vai de mangueira e rodo, e que Geppe sai dessas
refregas branquinho, branquinho. Mas Toldo jura que apenas instala
Geppe debaixo do chuveiro e fica de guarda.
Quem é Geppe Coppini? Vocês decidem.
Enquanto isso, aos 90 anos, acomodado no
vale cheiroso, entre tomates e repolhos, Geppe Coppini dá a sua
inconfundível risadinha sem dentes. A sua risadinha em capítulos.
– Ah, ah, ah.
Eliane Brum, in A vida que ninguém vê
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