Recebi sua carta com esse gosto de
missiva, de coisa antiga e meiga, que para mim é seu gosto. Você
rirá, tão bem instalada no mundo. Moderno você é, sabendo as
coisas todas, já tendo lidado com gente de todos os vícios,
conhecendo muitas receitas e todos os truques. Você sabe muito! Você
é de uma geração de mulheres do Brasil que eu chamo de geração
forte. Nem me digam que essas meninas que hoje começam a badalar por
aí serão ainda mais fortes. Não sei.
Conheço algumas, são diferentes;
oscilando entre a análise de grupo e o sexo grupal, começam a viver
mais cedo, em todo caso me dão a inquieta impressão de que provam
de tudo e não sabem de nada. Ah, minha amiga, que vontade de bater
um papo longo com você, aquelas conversas de Ipanema, se lembra? —
quando a tarde começava a descer e o rush dos pássaros sobre os
terraços, ao longo do mar, passando com tanta pressa do Leblon para
o Posto Seis nos fazia pensar, meio tristes, que a noite não
tardaria a chegar e breve seria a hora de você sair, me mandar um
último sorriso antes de dobrar a esquina para pegar seu carrinho.
Desculpe, agora que comecei a lembrar estou com saudade de tudo, até
de seu carrinho — ah! nosso tempo era bom.
Era bom.
No fundo é isto apenas que sua carta
diz: era bom; foi bom. O que eu acho antigo e meigo é você ter me
escrito apenas para dizer isto, e dizer com simplicidade de alma, sem
remorso nem aflição: foi bom. Foi bom talvez porque, para começo
de conversa, não aborreceu ninguém. Não quisemos que ninguém
nunca soubesse nada — para, nem por acaso, ferir ninguém. É na
verdade muito bom, saber que em um mundo de tanta tristeza nosso
pequeno mundo conseguiu existir sem fazer triste ninguém, como se o
pequeno apartamento boiasse em uma nuvem dourada, longe de tudo e de
todos... pois sim, você dirá rindo, e aquele susto quando eu perdi
a chave do carro! E aquele nosso conhecido que estava no bar da
esquina — e aquela amiga com quem eu esbarrei na calçada — e
aquele seu amigo que bateu na porta um minuto depois de eu chegar?
É verdade, houve algum susto e perigo —
mas quanto cigarro fumado com sossego, também! Quanta conversa
comprida, largada, íntima, sem astúcia nem farol, nenhum de nós
dois fingindo de inteligente nem de bacana — acho que tudo foi tão
bom porque eu não queria mais nada de você e você não esperava
mais nada de mim, nosso amor era uma estima — bem aconchegada, é
claro, mas uma grande estima de corpo e alma, acho que pouco ou nada
falamos de amor, e o fizemos bastante, não é? E nos amamos com uma
certa honestidade, não foi? Ah, eu sou homem decente, eu sou de uma
boa família de Cachoeiro de Itapemirim, e você para mim é a imagem
mesma da mulher decente — vamos falar bem de nós dois? Merecemos.
Nesse caso, pelo menos, um em relação ao outro, merecemos. Fomos
bons. Foi bom. Muito obrigado pela cartinha. Adeus.
Rubem Braga, in Recado de primavera
Nenhum comentário:
Postar um comentário