quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Torto Arado / 4

          Donana retornou com a barra da saia molhada. Disse que tinha ido à beira do rio deixar o mal por lá. Entendi por mal a faca com cabo de marfim e, mesmo distante, senti seu brilho ofuscar minhas lembranças. Deveria estar no “embrulho” que dona Tonha disse que ela havia levado. Parecia abatida, pálida, com as pálpebras caídas e inchadas. Se aproximou de nós para nos afagar com a mesma mão que desabou sobre nossas cabeças. Senti suas mãos nodosas percorrendo nossos rostos, para logo depois entrar no quarto sem dizer mais nada. Dali não sairia até o dia seguinte.
Meu pai se dirigiu ao quarto dos santos e acendeu uma vela. Nossa mãe nos levou para o seu quarto de dormir e pediu que ficássemos quietas na cama dela. Amarrou a cortina que separava a porta da sala para que pudesse nos observar de onde estivesse. Parecia ter medo que aprontássemos algo de novo. Disse que iria lavar a trouxa de roupa, empapada de sangue, que levou na viagem para o hospital. Do quarto, ouvi dona Tonha pedir as roupas para ela mesma lavar. Minha mãe era uma mulher alta – mais alta que nosso pai – com um corpo forte e mãos grandes. Tinha uma distinção admirada pelos que a cercavam, o que a fazia também querida pelos vizinhos. Mas naquele dia parecia ter perdido aquela aura nobre, estava com os ombros curvados, demonstrava exaustão.
Senti Belonísia estender sua mão até a minha e segurar com força. Estávamos impedidas de falar, então fomos aprendendo de forma instintiva que os gestos comunicariam o que não poderia ser dito. Adormecemos assim naquele primeiro dia.
Donana jamais se recuperou do ocorrido. Mal saía de casa para o quintal ou terreiro. Costumava sentar na beira da cama, arrumava e desarrumava sua velha mala de couro. Retirava os objetos, roupas, frasco de perfume vazio, um pequeno espelho, uma escova de cabelo velha, um missal, papéis que pareciam ser documentos. Lamentava não ter nenhum retrato dos filhos. Não se incomodava mais com a nossa presença ao seu lado, mesmo nesse momento de intimidade, de arrumar e desarrumar seus objetos.
Fazia aquilo para preencher o tempo. Há muito que não ia mais para a roça, estava reduzida a remexer no que se plantava no quintal. E até mesmo este, que era dos seus poucos prazeres no fim da vida, foi deixando de lado. Havia perdido o interesse pelas plantas que cuidava, pelos xaropes de raiz que costumava receitar aos vizinhos e à própria família. Minha mãe assumiu essas poucas tarefas que Donana considerava suas. Ainda tentou estimular a sogra, chamando para o quintal para ver como tal planta estava vistosa, se o umbuzeiro estivesse florido, ou se alguma praga tivesse surgido em meio ao caos de nossa horta. Minha avó apenas olhava, sem interesse, resmungava e voltava para o quarto, se ocupando de retirar e colocar os objetos em sua velha mala, como se aguardasse a qualquer momento um convite para uma viagem de volta à fazenda onde havia nascido, o único lugar que parecia lhe interessar na vida.
Nos meses que se seguiram, durante o tempo em que nos recuperávamos, enquanto uma aprendia a expressar o desejo da outra, e a outra se fazia legível na expressão dos desejos, apenas algo retirou Donana do mundo de suas lembranças e do arrumar e desarrumar cotidiano daquela mala: um cão que Belonísia encontrou com a pata quebrada na estrada para a roça. Ele abanava o rabo como as folhas da palmeira e andava em pequenos pulos sobre três pernas, sendo que uma das patas dianteiras tinha algum osso quebrado, o que fazia com que a balançasse no ar enquanto se esforçava de forma comovente para caminhar. Algo no animal havia rompido o mutismo de todos nos últimos meses e víamos Donana chamar qualquer um da casa para relatar algum movimento diferente do cão. Por um período ela se esqueceu da mala e passou mais tempo na janela para observar Fusco , nome que ela mesma escolheu, e que parecia ser a única companhia que lhe importava.
Logo passou a pedir que dormíssemos em seu pequeno quarto para não deixá-la só. Seguíamos. Donana contava histórias que não tinham fim. Antes de terminá-las, adormecia. Por saber que aquelas histórias não acabariam, às vezes eu dormia antes dela. Escutava-a levantar de madrugada para abrir a porta do quintal ainda no sereno para conversar com Fusco, quase em sussurros. Ainda assim era possível ouvir o som de sua voz. Em toda nossa vida, Donana nunca tinha nos batido como naquele dia em que contrariamos o que considerava sagrado, violando seu passado, trazendo de volta coisas que decerto não gostaria recordar. Nem queria que nossas mãos inocentes segurassem o motivo de suas dores, ao mesmo tempo que não gostaria de ter que se desfazer de suas lembranças por completo, porque a mantinham viva. Davam sentido ao que lhe sobrara dos dias, na mesma medida em que demonstravam que não havia sido compassiva com as dificuldades que encontrou em seu caminho. Numa manhã, Donana acordou me chamando de Carmelita, dizendo que iria dar um jeito em tudo, que eu não me preocupasse, que não precisaria mais viajar. Àquela época eu tinha doze anos e Belonísia se aproximava dos onze. Vi Donana nas manhãs seguintes chamar Belonísia de Carmelita também. Minha irmã apenas ria da confusão. Olhávamos uma para a outra e nos deixávamos caçoar pela desordem que se instaurou nos falares de Donana. Em seus pensamentos, Fusco havia se tornado uma onça, pedia para que tivéssemos cuidado. Nos convidava a caminhar pelas veredas por onde iríamos buscar meu pai que, haviam dito, estava dormindo aos pés de um jatobá ao lado da onça mansa que o cão havia se tornado. Sabíamos que nosso pai estava na roça, trabalhando todos os dias, então as coisas que minha avó falava não faziam sentido. Mesmo assim, minha mãe pedia que a acompanhássemos, que vigiássemos para que não lhe sucedesse nenhum acidente ou se perdesse em meio à mata. “Não deixem sua avó se embrenhar nas ribanceiras. Cuidado com a cobra. Não riam de sua avó.” Caminhávamos colhendo os frutos que já estavam doces, enquanto adentrávamos o mês de dezembro. Nos esquecíamos de Donana, às vezes nos perdíamos, ficávamos quietas, e logo uma ordem vinha do meio da mata, chamando Carmelita e os meninos para buscar Zeca, e então corríamos ao seu encontro.
Quando meu pai chegava à casa e os netos diziam que Zeca estava ali diante de seus olhos, minha avó dizia não ser verdade, que dele só queria o chapéu que levaria com ela.
Numa tarde de fevereiro, no meio da modorra que o calor nos fazia, Donana saiu sem que percebêssemos. Quando minha mãe, que lavrava um pedaço de terra mais perto de casa, entrou para tomar um copo d’água, percebeu que a sogra não estava ali. Pediu que eu fosse atrás dela. Procurei Belonísia para me acompanhar, mas não a encontrei. Desci pelo caminho que minha avó costumava fazer buscando por meu pai, acompanhada dos “meninos”. Tinha um pé de buriti grande por onde andei, o chão estava coberto de frutos. Antes de seguir na busca por Donana, que deveria estar no lugar de sempre, juntei os que conseguia carregar e levei na barra de meu próprio vestido transformado em cesto. Eram frutos rígidos, cor de cobre, nem pareciam se desmanchar numa polpa suculenta untando os corpos das mulheres que iam vender sua massa na cidade. A venda nos garantia comprar as coisas de que precisávamos quando a roça não resistia à seca ou à enchente do rio. Foi assim que cheguei à beira do rio Utinga, no raso que era passagem permanente para o brejo no caminho das roças, e encontrei Donana emborcada como um bicho na beira e dentro d’água. Seus cabelos brancos pareciam uma esponja luminosa que refletia a luz do sol no espelho que se formava. Reconheci porque era o vestido surrado de minha avó, um vestido que, de tão velho, talvez fosse o mesmo com que ela chegou numa boleia de caminhão, acompanhada de meu pai pouco antes que eu nascesse. Assombrada com aquela visão, talvez a primeira de minha vida, deixei os frutos caírem e rolarem para o leito de água. Sacudi minha avó – poderá acordar? –, virei seu corpo pequeno e frágil, puxei sem conseguir, não tinha força para retirá-la da água.
Corri para casa para buscar ajuda, sufocada pelo que havia visto. Encontrei Belonísia agachada no mesmo pé de buriti de onde eu havia colhido os frutos. Ela juntava os que não pude carregar no caminho para o rio, quando viu o pavor em meu rosto. Uma de nós levaria a notícia para casa.

Itamar Vieira Júnior, in Torto Arado

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