Donana retornou com a barra da saia
molhada. Disse que tinha ido à beira do rio deixar o mal por lá.
Entendi por “mal” a faca com cabo de marfim e, mesmo distante,
senti seu brilho ofuscar minhas lembranças. Deveria estar no
“embrulho” que dona Tonha disse que ela havia levado. Parecia
abatida, pálida, com as pálpebras caídas e inchadas. Se aproximou
de nós para nos afagar com a mesma mão que desabou sobre nossas
cabeças. Senti suas mãos nodosas percorrendo nossos rostos, para
logo depois entrar no quarto sem dizer mais nada. Dali não sairia
até o dia seguinte.
Meu pai se dirigiu ao quarto dos santos e
acendeu uma vela. Nossa mãe nos levou para o seu quarto de dormir e
pediu que ficássemos quietas na cama dela. Amarrou a cortina que
separava a porta da sala para que pudesse nos observar de onde
estivesse. Parecia ter medo que aprontássemos algo de novo. Disse
que iria lavar a trouxa de roupa, empapada de sangue, que levou na
viagem para o hospital. Do quarto, ouvi dona Tonha pedir as roupas
para ela mesma lavar. Minha mãe era uma mulher alta – mais alta
que nosso pai – com um corpo forte e mãos grandes. Tinha uma
distinção admirada pelos que a cercavam, o que a fazia também
querida pelos vizinhos. Mas naquele dia parecia ter perdido aquela
aura nobre, estava com os ombros curvados, demonstrava exaustão.
Senti Belonísia estender sua mão até a
minha e segurar com força. Estávamos impedidas de falar, então
fomos aprendendo de forma instintiva que os gestos comunicariam o que
não poderia ser dito. Adormecemos assim naquele primeiro dia.
Donana jamais se recuperou do ocorrido.
Mal saía de casa para o quintal ou terreiro. Costumava sentar na
beira da cama, arrumava e desarrumava sua velha mala de couro.
Retirava os objetos, roupas, frasco de perfume vazio, um pequeno
espelho, uma escova de cabelo velha, um missal, papéis que pareciam
ser documentos. Lamentava não ter nenhum retrato dos filhos. Não se
incomodava mais com a nossa presença ao seu lado, mesmo nesse
momento de intimidade, de arrumar e desarrumar seus objetos.
Fazia aquilo para preencher o tempo. Há
muito que não ia mais para a roça, estava reduzida a remexer no que
se plantava no quintal. E até mesmo este, que era dos seus poucos
prazeres no fim da vida, foi deixando de lado. Havia perdido o
interesse pelas plantas que cuidava, pelos xaropes de raiz que
costumava receitar aos vizinhos e à própria família. Minha mãe
assumiu essas poucas tarefas que Donana considerava suas. Ainda
tentou estimular a sogra, chamando para o quintal para ver como tal
planta estava vistosa, se o umbuzeiro estivesse florido, ou se alguma
praga tivesse surgido em meio ao caos de nossa horta. Minha avó
apenas olhava, sem interesse, resmungava e voltava para o quarto, se
ocupando de retirar e colocar os objetos em sua velha mala, como se
aguardasse a qualquer momento um convite para uma viagem de volta à
fazenda onde havia nascido, o único lugar que parecia lhe interessar
na vida.
Nos meses que se seguiram, durante o
tempo em que nos recuperávamos, enquanto uma aprendia a expressar o
desejo da outra, e a outra se fazia legível na expressão dos
desejos, apenas algo retirou Donana do mundo de suas lembranças e do
arrumar e desarrumar cotidiano daquela mala: um cão que Belonísia
encontrou com a pata quebrada na estrada para a roça. Ele abanava o
rabo como as folhas da palmeira e andava em pequenos pulos sobre três
pernas, sendo que uma das patas dianteiras tinha algum osso quebrado,
o que fazia com que a balançasse no ar enquanto se esforçava de
forma comovente para caminhar. Algo no animal havia rompido o mutismo
de todos nos últimos meses e víamos Donana chamar qualquer um da
casa para relatar algum movimento diferente do cão. Por um período
ela se esqueceu da mala e passou mais tempo na janela para observar
Fusco , nome que ela mesma escolheu, e que parecia ser a única
companhia que lhe importava.
Logo passou a pedir que dormíssemos em
seu pequeno quarto para não deixá-la só. Seguíamos. Donana
contava histórias que não tinham fim. Antes de terminá-las,
adormecia. Por saber que aquelas histórias não acabariam, às vezes
eu dormia antes dela. Escutava-a levantar de madrugada para abrir a
porta do quintal ainda no sereno para conversar com Fusco,
quase em sussurros. Ainda assim era possível ouvir o som de sua voz.
Em toda nossa vida, Donana nunca tinha nos batido como naquele dia em
que contrariamos o que considerava sagrado, violando seu passado,
trazendo de volta coisas que decerto não gostaria recordar. Nem
queria que nossas mãos inocentes segurassem o motivo de suas dores,
ao mesmo tempo que não gostaria de ter que se desfazer de suas
lembranças por completo, porque a mantinham viva. Davam sentido ao
que lhe sobrara dos dias, na mesma medida em que demonstravam que não
havia sido compassiva com as dificuldades que encontrou em seu
caminho. Numa manhã, Donana acordou me chamando de Carmelita,
dizendo que iria dar um jeito em tudo, que eu não me preocupasse,
que não precisaria mais viajar. Àquela época eu tinha doze anos e
Belonísia se aproximava dos onze. Vi Donana nas manhãs seguintes
chamar Belonísia de Carmelita também. Minha irmã apenas ria da
confusão. Olhávamos uma para a outra e nos deixávamos caçoar pela
desordem que se instaurou nos falares de Donana. Em seus pensamentos,
Fusco havia se tornado uma onça, pedia para que tivéssemos cuidado.
Nos convidava a caminhar pelas veredas por onde iríamos buscar meu
pai que, haviam dito, estava dormindo aos pés de um jatobá ao lado
da onça mansa que o cão havia se tornado. Sabíamos que nosso pai
estava na roça, trabalhando todos os dias, então as coisas que
minha avó falava não faziam sentido. Mesmo assim, minha mãe pedia
que a acompanhássemos, que vigiássemos para que não lhe sucedesse
nenhum acidente ou se perdesse em meio à mata. “Não deixem sua
avó se embrenhar nas ribanceiras. Cuidado com a cobra. Não riam de
sua avó.” Caminhávamos colhendo os frutos que já estavam doces,
enquanto adentrávamos o mês de dezembro. Nos esquecíamos de
Donana, às vezes nos perdíamos, ficávamos quietas, e logo uma
ordem vinha do meio da mata, chamando Carmelita e os meninos para
buscar Zeca, e então corríamos ao seu encontro.
Quando meu pai chegava à casa e os netos
diziam que Zeca estava ali diante de seus olhos, minha avó dizia não
ser verdade, que dele só queria o chapéu que levaria com ela.
Numa tarde de fevereiro, no meio da
modorra que o calor nos fazia, Donana saiu sem que percebêssemos.
Quando minha mãe, que lavrava um pedaço de terra mais perto de
casa, entrou para tomar um copo d’água, percebeu que a sogra não
estava ali. Pediu que eu fosse atrás dela. Procurei Belonísia para
me acompanhar, mas não a encontrei. Desci pelo caminho que minha avó
costumava fazer buscando por meu pai, acompanhada dos “meninos”.
Tinha um pé de buriti grande por onde andei, o chão estava coberto
de frutos. Antes de seguir na busca por Donana, que deveria estar no
lugar de sempre, juntei os que conseguia carregar e levei na barra de
meu próprio vestido transformado em cesto. Eram frutos rígidos, cor
de cobre, nem pareciam se desmanchar numa polpa suculenta untando os
corpos das mulheres que iam vender sua massa na cidade. A venda nos
garantia comprar as coisas de que precisávamos quando a roça não
resistia à seca ou à enchente do rio. Foi assim que cheguei à
beira do rio Utinga, no raso que era passagem permanente para o brejo
no caminho das roças, e encontrei Donana emborcada como um bicho na
beira e dentro d’água. Seus cabelos brancos pareciam uma esponja
luminosa que refletia a luz do sol no espelho que se formava.
Reconheci porque era o vestido surrado de minha avó, um vestido que,
de tão velho, talvez fosse o mesmo com que ela chegou numa boleia de
caminhão, acompanhada de meu pai pouco antes que eu nascesse.
Assombrada com aquela visão, talvez a primeira de minha vida, deixei
os frutos caírem e rolarem para o leito de água. Sacudi minha avó
– poderá acordar? –, virei seu corpo pequeno e frágil, puxei
sem conseguir, não tinha força para retirá-la da água.
Corri para casa para buscar ajuda,
sufocada pelo que havia visto. Encontrei Belonísia agachada no mesmo
pé de buriti de onde eu havia colhido os frutos. Ela juntava os que
não pude carregar no caminho para o rio, quando viu o pavor em meu
rosto. Uma de nós levaria a notícia para casa.
Itamar Vieira Júnior, in Torto Arado
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