Chamava-se Norka e, não contente com
isso, chamava-se Ruskaia. Eu devia ter 16 ou 17 anos — idade em que
um rapaz de Cachoeiro de Itapemirim chegado há pouco ao Rio acha
infernal uma senhora com um nome assim.
Só a vi uma vez. Foi no Teatro Fênix.
Ela dançava um tanto desnuda, com uns véus a flutuar, e ao mesmo
tempo tocava violino. E era loura; era, com certeza, até russa,
talvez até russa soviética — mas se não fosse soviética seria,
pelo menos, princesa.
Homens de mais idade devem ter conhecido,
no Rio, essa Norka Ruskaia.
Algum talvez a tenha amado. Eu achei
vagamente exagerado uma pessoa, além de ter esse nome e ser loura,
ainda por cima tocar violino dançando. E no alto, no teto do teatro,
havia um globo de luz cheio de espelhos ou vidrilhos que giravam na
penumbra, enchendo a sala de estrelas, em voo circular. Era muita
coisa para um rapaz pobre do interior; nunca tentei ver de perto
Norka Ruskaia; nunca ninguém me disse coisa alguma a seu respeito;
nunca mais ouvi pronunciar seu nome. Esquecê-lo é que não me foi
possível.
Pois outro dia eu estava lendo uma
revista chilena, e mergulho em um artigo sobre Mariátegui, escritor
e líder comunista peruano que morreu aos 35 anos de idade, em 1930;
e a certa altura da vida de Mariátegui esbarrei com Norka Ruskaia. A
referência não é muito longa.
Apenas se diz que uma vez um grupo de
intelectuais peruanos fez uma reunião à meia-noite, no cemitério
de Lima — e Norka Ruskaia dançou ao luar, saltando sobre o mármore
dos túmulos.
Mariátegui estava presente, e a coisa
deu em escândalo, campanha de imprensa conservadora falando em
profanação dos mortos, protestos tremendos, prisões e
perseguições.
Bem que eu imaginava coisas sobre aquela
mulher. Chamava-se Norka! E ainda por cima Ruskaia! E eu estava na
idade em que a gente ainda não sabe que a mulher terrível da vida
de cada um, no fim, se chama mesmo é Maria, ou Ana, ou Joana.
Ou até mesmo Sueli.
Rubem Braga, in Recado de primavera
Nenhum comentário:
Postar um comentário