domingo, 7 de fevereiro de 2021

Era loura, chamava-se Norka

          Chamava-se Norka e, não contente com isso, chamava-se Ruskaia. Eu devia ter 16 ou 17 anos — idade em que um rapaz de Cachoeiro de Itapemirim chegado há pouco ao Rio acha infernal uma senhora com um nome assim.
Só a vi uma vez. Foi no Teatro Fênix. Ela dançava um tanto desnuda, com uns véus a flutuar, e ao mesmo tempo tocava violino. E era loura; era, com certeza, até russa, talvez até russa soviética — mas se não fosse soviética seria, pelo menos, princesa.
Homens de mais idade devem ter conhecido, no Rio, essa Norka Ruskaia.
Algum talvez a tenha amado. Eu achei vagamente exagerado uma pessoa, além de ter esse nome e ser loura, ainda por cima tocar violino dançando. E no alto, no teto do teatro, havia um globo de luz cheio de espelhos ou vidrilhos que giravam na penumbra, enchendo a sala de estrelas, em voo circular. Era muita coisa para um rapaz pobre do interior; nunca tentei ver de perto Norka Ruskaia; nunca ninguém me disse coisa alguma a seu respeito; nunca mais ouvi pronunciar seu nome. Esquecê-lo é que não me foi possível.
Pois outro dia eu estava lendo uma revista chilena, e mergulho em um artigo sobre Mariátegui, escritor e líder comunista peruano que morreu aos 35 anos de idade, em 1930; e a certa altura da vida de Mariátegui esbarrei com Norka Ruskaia. A referência não é muito longa.
Apenas se diz que uma vez um grupo de intelectuais peruanos fez uma reunião à meia-noite, no cemitério de Lima — e Norka Ruskaia dançou ao luar, saltando sobre o mármore dos túmulos.
Mariátegui estava presente, e a coisa deu em escândalo, campanha de imprensa conservadora falando em profanação dos mortos, protestos tremendos, prisões e perseguições.
Bem que eu imaginava coisas sobre aquela mulher. Chamava-se Norka! E ainda por cima Ruskaia! E eu estava na idade em que a gente ainda não sabe que a mulher terrível da vida de cada um, no fim, se chama mesmo é Maria, ou Ana, ou Joana.
Ou até mesmo Sueli.

Rubem Braga, in Recado de primavera

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