Sempre senti que é impossível se
envolver direito com um lugar ou uma pessoa sem se envolver com todas
as histórias daquele lugar ou daquela pessoa. A consequência da
história única é esta: ela rouba a dignidade das pessoas. Torna
difícil o reconhecimento da nossa humanidade em comum. Enfatiza como
somos diferentes, e não como somos parecidos.
E se, antes da minha viagem ao México,
eu tivesse acompanhado o debate sobre a imigração de ambos os
lados, tanto o americano quanto o mexicano? E se minha mãe tivesse
dito para nós que a família de Fide era pobre e trabalhadora? E se
tivéssemos uma rede de televisão africana que transmitisse
histórias africanas diversas para o mundo todo, naquilo que o
escritor nigeriano Chinua Achebe chama de “um equilíbrio de
histórias?”.
E se minha colega de quarto soubesse do
meu editor nigeriano, Muhtar Bakare, um homem extraordinário que
largou seu emprego num banco para abrir uma editora? O senso comum
dizia que os nigerianos não liam literatura. Ele discordava. Sentia
que as pessoas que sabiam ler leriam se a literatura estivesse
disponível e acessível para elas.
Pouco tempo depois de Bakare publicar meu
primeiro romance, fui a uma emissora de TV em Lagos para uma
entrevista. Uma mulher que trabalhava lá me abordou e disse: “Gostei
muito do seu romance, mas não gostei do fim. Você precisa escrever
uma continuação, e é isto que vai acontecer...” — então
começou a me dizer o que escrever. Fiquei não só encantada, mas
muito comovida. Lá estava aquela mulher, parte da massa de
nigerianos que supostamente não é leitora. Ela não só tinha lido
o livro como tinha se apropriado dele e se sentido à vontade para me
dizer o que escrever na continuação. E se a minha colega de quarto
soubesse da minha amiga Funmi Iyanda, uma mulher destemida que
apresenta um programa de TV em Lagos e está decidida a contar as
histórias que preferimos esquecer? E se ela soubesse do procedimento
cardíaco que foi feito no hospital de Lagos na semana passada? E se
soubesse da música nigeriana contemporânea, com pessoas talentosas
cantando em inglês e pidgin, em igbo, iorubá e ijo, misturando
influências que vão de Jay-Z a Fela, de Bob Marley até seus avós?
E se a minha colega soubesse da advogada que recentemente foi aos
tribunais da Nigéria contestar uma lei ridícula que exigia que as
mulheres tivessem o consentimento do marido para renovar o
passaporte? E se soubesse de Nollywood, cheia de pessoas inovadoras
fazendo filmes apesar de grandes dificuldades técnicas, filmes tão
populares que realmente são o melhor exemplo de nigerianos
consumindo o que produzem? E se minha colega soubesse da mulher
maravilhosamente ambiciosa que trança meus cabelos e que acabou de
abrir seu próprio negócio para vender apliques? E dos milhões de
outros nigerianos que empreendem e às vezes fracassam, mas continuam
a acalentar ambições? Sempre que estou no meu país, sou
confrontada com as fontes de irritação comuns à maioria dos
nigerianos: nossa infraestrutura falida, nosso governo falido. Mas
também com a incrível resiliência de um povo que prospera apesar
do governo, e não graças a ele. Dou oficinas de escrita em Lagos
todo verão, e para mim é maravilhoso ver quantas pessoas se
inscrevem, quantas estão ansiosas para escrever, para contar
histórias. Meu editor nigeriano e eu acabamos de fundar uma
organização sem fins lucrativos chamada Farafina Trust e temos
grandes sonhos: construir bibliotecas, reformar as que já existem e
doar livros para escolas públicas que não têm acervo, além de
organizar diversas oficinas de leitura e escrita para as pessoas que
estão ansiosas para contar nossas muitas histórias.
As histórias importam. Muitas histórias
importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas
também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem
despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa
dignidade despedaçada.
A escritora americana Alice Walker
escreveu sobre seus parentes do sul que haviam se mudado para o norte
quando apresentou a eles um livro sobre a vida que haviam deixado
para trás: “ficaram sentados, lendo eles próprios o livro, me
ouvindo ler o livro, e uma espécie de paraíso foi reavido”.
Eu gostaria de terminar com esta ideia:
quando rejeitamos a história única, quando percebemos que nunca
existe uma história única sobre lugar nenhum, reavemos uma espécie
de paraíso.
Obrigada.
Chimamanda Ngozi Adichie, in O perigo de uma história única
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