domingo, 7 de fevereiro de 2021

As histórias importam. Muitas histórias importam

          Sempre senti que é impossível se envolver direito com um lugar ou uma pessoa sem se envolver com todas as histórias daquele lugar ou daquela pessoa. A consequência da história única é esta: ela rouba a dignidade das pessoas. Torna difícil o reconhecimento da nossa humanidade em comum. Enfatiza como somos diferentes, e não como somos parecidos.
E se, antes da minha viagem ao México, eu tivesse acompanhado o debate sobre a imigração de ambos os lados, tanto o americano quanto o mexicano? E se minha mãe tivesse dito para nós que a família de Fide era pobre e trabalhadora? E se tivéssemos uma rede de televisão africana que transmitisse histórias africanas diversas para o mundo todo, naquilo que o escritor nigeriano Chinua Achebe chama de “um equilíbrio de histórias?”.
E se minha colega de quarto soubesse do meu editor nigeriano, Muhtar Bakare, um homem extraordinário que largou seu emprego num banco para abrir uma editora? O senso comum dizia que os nigerianos não liam literatura. Ele discordava. Sentia que as pessoas que sabiam ler leriam se a literatura estivesse disponível e acessível para elas.
Pouco tempo depois de Bakare publicar meu primeiro romance, fui a uma emissora de TV em Lagos para uma entrevista. Uma mulher que trabalhava lá me abordou e disse: “Gostei muito do seu romance, mas não gostei do fim. Você precisa escrever uma continuação, e é isto que vai acontecer...” — então começou a me dizer o que escrever. Fiquei não só encantada, mas muito comovida. Lá estava aquela mulher, parte da massa de nigerianos que supostamente não é leitora. Ela não só tinha lido o livro como tinha se apropriado dele e se sentido à vontade para me dizer o que escrever na continuação. E se a minha colega de quarto soubesse da minha amiga Funmi Iyanda, uma mulher destemida que apresenta um programa de TV em Lagos e está decidida a contar as histórias que preferimos esquecer? E se ela soubesse do procedimento cardíaco que foi feito no hospital de Lagos na semana passada? E se soubesse da música nigeriana contemporânea, com pessoas talentosas cantando em inglês e pidgin, em igbo, iorubá e ijo, misturando influências que vão de Jay-Z a Fela, de Bob Marley até seus avós? E se a minha colega soubesse da advogada que recentemente foi aos tribunais da Nigéria contestar uma lei ridícula que exigia que as mulheres tivessem o consentimento do marido para renovar o passaporte? E se soubesse de Nollywood, cheia de pessoas inovadoras fazendo filmes apesar de grandes dificuldades técnicas, filmes tão populares que realmente são o melhor exemplo de nigerianos consumindo o que produzem? E se minha colega soubesse da mulher maravilhosamente ambiciosa que trança meus cabelos e que acabou de abrir seu próprio negócio para vender apliques? E dos milhões de outros nigerianos que empreendem e às vezes fracassam, mas continuam a acalentar ambições? Sempre que estou no meu país, sou confrontada com as fontes de irritação comuns à maioria dos nigerianos: nossa infraestrutura falida, nosso governo falido. Mas também com a incrível resiliência de um povo que prospera apesar do governo, e não graças a ele. Dou oficinas de escrita em Lagos todo verão, e para mim é maravilhoso ver quantas pessoas se inscrevem, quantas estão ansiosas para escrever, para contar histórias. Meu editor nigeriano e eu acabamos de fundar uma organização sem fins lucrativos chamada Farafina Trust e temos grandes sonhos: construir bibliotecas, reformar as que já existem e doar livros para escolas públicas que não têm acervo, além de organizar diversas oficinas de leitura e escrita para as pessoas que estão ansiosas para contar nossas muitas histórias.
As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada.
A escritora americana Alice Walker escreveu sobre seus parentes do sul que haviam se mudado para o norte quando apresentou a eles um livro sobre a vida que haviam deixado para trás: “ficaram sentados, lendo eles próprios o livro, me ouvindo ler o livro, e uma espécie de paraíso foi reavido”.
Eu gostaria de terminar com esta ideia: quando rejeitamos a história única, quando percebemos que nunca existe uma história única sobre lugar nenhum, reavemos uma espécie de paraíso.
Obrigada.

Chimamanda Ngozi Adichie, in O perigo de uma história única

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