terça-feira, 25 de agosto de 2020

Solar dos Príncipes



Quatro negros e uma negra pararam na frente deste prédio.
A primeira mensagem do porteiro foi: “Meu Deus!” A segunda: “O que vocês querem?” ou “Qual o apartamento?” Ou “Por que ainda não consertaram o elevador de serviço?”
Estamos fazendo um filme”, respondemos.
Caroline argumentou: “Um documentário”. Sei lá o que é isso, sei lá, não sei. A gente mostra o documento de identidade de cada um e pronto.
Estamos filmando.”
Filmando? Ladrão é assim quando quer sequestrar. Acompanha o dia-a-dia, costumes, a que horas a vítima sai para trabalhar. O prédio tem gerente de banco, médico, advogado. Menos o síndico. O síndico nunca está.
De onde vocês são?
Do Morro do Pavão.
Viemos gravar um longa-metragem.
Metra o quê?
Metralhadora, cano Longo, granada, os negros armados até as gengivas. Não disse? Vou correr. Nordestino é homem. Porteiro é homem ou não é homem? Caroline dialogou: “A ideia é entrar num apartamento do prédio, de supetão, e filmar, fazer uma entrevista com o morador.”
O porteiro: “Entrar num apartamento?”
O porteiro: “Não.”
O pensamento: “Tô fodido.”
A ideia foi minha, confesso. O pessoal vive subindo o morro para fazer filme. A gente abre as nossas portas, mostra as nossas panelas, merda.
Foi assim: comprei uma câmera de terceira mão, marcamos, ensaiamos uns dias. Imagens exclusivas, colhidas na vida da classe média.
Caroline: “Querido, por favor, meu amor.” Caroline mostrou o microfone, de longe. Acenou com o batom, não sei.
Vou bem levar paulada de microfone? O microfone veio emprestado de um pai-de-santo, que patrocinou.
O porteiro apertou o apartamento 101, 102, 108. Foi mexendo em tudo que é andar. Estou sendo assaltado, pressionado, liguem para o 190, sei lá.
A graça era ninguém ser avisado. Perde-se a espontaneidade do depoimento. O condômino falar como é viver com carros na garagem, saldo, piscina, computador interligado. Dinheiro e sucesso. Festival de Brasília. Festival de Gramado. A gente fazendo exibição no telão da escola, no salão de festas do prédio.
Não.
A gente não só ouve samba. Não só ouve bala. Esse porteiro nem parece preto, deixando a gente preso do lado de fora. O morro tá lá, aberto 24 horas. A gente dá as boas-vindas de peito aberto. Os malandrões entram, tocam no nosso passado. A gente se abre que nem passarinho manso. A gente desabafa que nem papagaio. A gente canta, rebola. A gente oferece a nossa coca-cola.
Não quer deixar a gente estrear a porra do porteiro. É foda. Domingo, hoje é domingo. A gente só quer saber como a família almoça. Se fazem a mesma festa que a nossa. Prato, feijoada, guardanapo. Caralho, não precisa o síndico. Escute só. A gente vai tirar a câmera do saco. A gente mostra que é da paz, que a gente só quer melhorar, assim, o nosso cartaz. Fazer cinema. Cinema. Veja Fernanda Montenegro, quase ganha o Oscar.
Fernanda Montenegro não, aqui ela não mora.
E avisou: “Vou chamar a polícia.”
A gente: “Chamar a polícia?”
Não tem quem goste de polícia. A gente não quer esse tipo de notícia. O esquema foi todo montado num puta dum sacrifício. Nicholson deixou de ir vender churro. Caroline desistiu da boate. Eu deixei esposa, cadela e filho. Um longa não, é só um curta. Alegria de pobre é dura. Filma. O quê? Dei a ordem: filma.
Começamos a filmar tudo. Alguns moradores posando a cara na sacada. O trânsito que transita. A sirene da polícia. Hã? A sirene da polícia. Todo filme tem sirene de polícia. E tiro. Muito tiro.
Em câmera violenta. Porra, Johnattan pulou o portão de ferro fundido. O porteiro trancou-se no vidro. Assustador. Apareceu gente de todo tipo. E a ideia não era essa. Tivemos que improvisar.
Sem problema, tudo bem.
Na edição a gente manda cortar.
Marcelino Freire, in Contos negreiros

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