Quatro
negros e uma negra pararam na frente deste prédio.
A
primeira mensagem do porteiro foi: “Meu Deus!” A segunda: “O
que vocês querem?” ou “Qual o apartamento?” Ou “Por que
ainda não consertaram o elevador de serviço?”
“Estamos
fazendo um filme”, respondemos.
Caroline
argumentou: “Um documentário”. Sei lá o que é isso, sei lá,
não sei. A gente mostra o documento de identidade de cada um e
pronto.
“Estamos
filmando.”
Filmando?
Ladrão é assim quando quer sequestrar. Acompanha o dia-a-dia,
costumes, a que horas a vítima sai para trabalhar. O prédio tem
gerente de banco, médico, advogado. Menos o síndico. O síndico
nunca está.
— De
onde vocês são?
— Do
Morro do Pavão.
— Viemos
gravar um longa-metragem.
— Metra
o quê?
Metralhadora,
cano Longo, granada, os negros armados até as gengivas. Não disse?
Vou correr. Nordestino é homem. Porteiro é homem ou não é homem?
Caroline dialogou: “A ideia é entrar num apartamento do prédio,
de supetão, e filmar, fazer uma entrevista com o morador.”
O
porteiro: “Entrar num apartamento?”
O
porteiro: “Não.”
O
pensamento: “Tô fodido.”
A
ideia foi minha, confesso. O pessoal vive subindo o morro para fazer
filme. A gente abre as nossas portas, mostra as nossas panelas,
merda.
Foi
assim: comprei uma câmera de terceira mão, marcamos, ensaiamos uns
dias. Imagens exclusivas, colhidas na vida da classe média.
Caroline:
“Querido, por favor, meu amor.” Caroline mostrou o microfone, de
longe. Acenou com o batom, não sei.
Vou
bem levar paulada de microfone? O microfone veio emprestado de um
pai-de-santo, que patrocinou.
O
porteiro apertou o apartamento 101, 102, 108. Foi mexendo em tudo que
é andar. Estou sendo assaltado, pressionado, liguem para o 190, sei
lá.
A
graça era ninguém ser avisado. Perde-se a espontaneidade do
depoimento. O condômino falar como é viver com carros na garagem,
saldo, piscina, computador interligado. Dinheiro e sucesso. Festival
de Brasília. Festival de Gramado. A gente fazendo exibição no
telão da escola, no salão de festas do prédio.
Não.
A
gente não só ouve samba. Não só ouve bala. Esse porteiro nem
parece preto, deixando a gente preso do lado de fora. O morro tá lá,
aberto 24 horas. A gente dá as boas-vindas de peito aberto. Os
malandrões entram, tocam no nosso passado. A gente se abre que nem
passarinho manso. A gente desabafa que nem papagaio. A gente canta,
rebola. A gente oferece a nossa coca-cola.
Não
quer deixar a gente estrear a porra do porteiro. É foda. Domingo,
hoje é domingo. A gente só quer saber como a família almoça. Se
fazem a mesma festa que a nossa. Prato, feijoada, guardanapo.
Caralho, não precisa o síndico. Escute só. A gente vai tirar a
câmera do saco. A gente mostra que é da paz, que a gente só quer
melhorar, assim, o nosso cartaz. Fazer cinema. Cinema. Veja Fernanda
Montenegro, quase ganha o Oscar.
— Fernanda
Montenegro não, aqui ela não mora.
E
avisou: “Vou chamar a polícia.”
A
gente: “Chamar a polícia?”
Não
tem quem goste de polícia. A gente não quer esse tipo de notícia.
O esquema foi todo montado num puta dum sacrifício. Nicholson deixou
de ir vender churro. Caroline desistiu da boate. Eu deixei esposa,
cadela e filho. Um longa não, é só um curta. Alegria de pobre é
dura. Filma. O quê? Dei a ordem: filma.
Começamos
a filmar tudo. Alguns moradores posando a cara na sacada. O trânsito
que transita. A sirene da polícia. Hã? A sirene da polícia. Todo
filme tem sirene de polícia. E tiro. Muito tiro.
Em
câmera violenta. Porra, Johnattan pulou o portão de ferro fundido.
O porteiro trancou-se no vidro. Assustador. Apareceu gente de todo
tipo. E a ideia não era essa. Tivemos que improvisar.
Sem
problema, tudo bem.
Na
edição a gente manda cortar.
Marcelino
Freire, in Contos negreiros
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