Ela
entrou na ponta dos pés. Tirou os sapatos para subir a escada.
O
terceiro degrau rangia. Pulou-o apoiando-se no corrimão.
— Adriana!
A
moça ficou quieta, ouvindo. Teve um risinho frouxo quando se
inclinou para calçar os sapatos, Ih! que saco.
Fez
um afago no gato que lhe veio ao encontro, esfregando-se na parede.
Tomou-o no colo.
— Romi,
Romi... Então, meu amor?
— Adriana!
Assustado
com o grito, o gato fugiu espavorido pela escada abaixo.
Ela
prosseguiu sem pressa, arrastando pesadamente os pés. O quarto
estava iluminado. Empurrou a porta.
— Acordada
ainda, mãe?
A
mulher fez girar a cadeira de rodas e ficou defronte à porta.
Vestia
uma camisola de flanela e tinha um casaco de tricô atirado nos
ombros. Os olhos empapuçados reduziam-se a dois riscos pretos na
face amarela.
— Precisava
ser também na véspera do casamento? Precisava ser na
véspera? — repetiu a mulher agarrando-se aos braços da cadeira.
— Precisava.
— Cadela.
Já viu sua cara no espelho, já viu?
A
moça encostou-se no batente da porta. Abriu a bolsa e tirou o
cigarro. Acendeu-o. Quebrou o palito e ficou mascando a ponta.
— Acabou,
mãe? Quero dormir.
A
mulher aproximou mais a cadeira. Fechou no peito cavado a gola do
casaco. Falou em voz baixa, com suavidade.
— Na
véspera do casamento. Na vés-pe-ra. Você já viu sua cara
no espelho? Já se olhou num espelho?
— E
daí? O véu vai cobrir minha cara, o véu cobre tudo, ih! tem véu à
beça. Vou dar uma beleza de noiva, mãe, você vai ver. Preferia me
meter no meu colante preto mas seu genro é romântico, aquelas
ondas...
— Cínica.
Igualzinha ao pai. Ele ia achar graça se te visse assim, aquele
cínico.
— Não
fale do meu pai
— Falo!
Um cínico, um vagabundo que vivia no meio de vagabundos, viciado em
tudo quanto é porcaria. Você é igual. Adriana. O mesmo jeito
esparramado de andar, a mesma cara desavergonhada...
— Ele
era bom,
— Bom!
Aquilo então era bondade? Heim? Um debochado, um irresponsável
completamente viciado, igualzinho a você. Imagine, bom... Estou
farta desse tipo de bondade, quero gente com caráter, sabe o que é
caráter? É o que ele nunca teve, é o que você não tem. Na
véspera do casamento...
— Na
véspera ou no dia seguinte, que diferença faz? A mulher sacudiu-se
na cadeira.
— Às
vezes nem acredito. Uma filha assim, eu não acredito.
A
moça esfregou os olhos congestionados. O rímel das pestanas deixou
nas pálpebras dois grossos aros de carvão.
— Sou
ótima, mãe. Uma ótima menina, é o que todo mundo diz.
A
mulher quis abotoar o casaco. Faltavam botões. Fechou a gola na mão.
— Por
que não se casa com ele? Hein? Vamos. Adriana, por que não se casa
com ele?
— Com
ele quem?
— Com
esse vagabundo que acabou de te deixar no portão.
— Porque
ele não quer, ora.
— Ah,
porque ele não quer — repetiu a mulher. Parecia triunfante.
— Gostei
da sua franqueza, porque ele não quer. Ninguém quer, minha
querida. Você já teve dúzias de homens e nenhum quis, só mesmo
esse inocente do seu noivo...
— Mas
ele não é inocente, mãezinha. Ele é preto.
A
mulher respirou com dificuldade. Abriu nos joelhos as mãos cor de
palha. Inclinou-se para a frente e baixou o tom de voz.
— Por
que você diz isso?
Adriana
deixou cair o cigarro e vagarosamente esmagou a brasa no salto do
sapato. Passou a mão indolente pelos cabelos oxigenados de louro.
Apanhou uma ponta mais comprida, levou-a até a cara e ficou
brincando com o cabelo no lábio arregaçado.
— Olha
só o meu bigode, mãe, agora tenho um bigode!
— Responda.
Adriana, por que você diz isso? Que ele é preto.
A
moça abriu a boca para bocejar. Desatou a rir.
— Oh!
meu Deus... Porque é verdade, querida. E você sabe que é verdade
mas não quer reconhecer, o horror que você tem de preto. Bom, não
deve ser mesmo muito agradável, concordo, um saco ter uma filha
casada com um preto. Ih! que saco. Preto disfarçado, mas preto. Já
reparou nas unhas dele? No cabelo? Reparou sim, você é tão
esperta, um faro! Sou branca, tudo bem, mas meu sangue é podre.
Então é o sangue dele que vai vigorar, entendeu? Seus netos vão
sair moreninhos, aquela cor linda de brasileiro.
— Chega,
Adriana.
— Não
chega não, eu queria dormir, lembra? Então é isso daí, nunca vi
ninguém reconhecer preto assim fácil como você, um puta faro.
O
tipo pode botar peruca, se pintar de ouro e de repente num detalhe,
aquele detalhinho...
Inclinou-se
para apanhar a bolsa que caiu. Catou vacilante o pente e o espelho,
quis ainda alcançar o lápis que rolou no assoalho, desistiu do
lápis, Ih!... Levantou-se apertando a bolsa contra o peito, a outra
mão apoiada na maçaneta da porta. Respirou penosamente, a boca
aberta. Encarou a mulher. Tudo bem?
— Tudo
bem. Adriana. Tenho é muita pena desse moço. Seu noivo. Casar com
uma coisa dessas, imagine.
— Mas
ele vai ser podre de feliz comigo, mãezinha. Podre de feliz. Se
encher muito, despacho o negro lá pros States, tem uma cidade
lindinha, como é mesmo?... O nome, eu sabia o nome, ah! você já
ouviu falar, você adora ler essas notícias, não adora? Espera um
pouco... pronto, lembrei, Little Rock! Isso daí. Little Rock. A
diversão lá é linchar a negrada.
A
mulher retesou-se inteira, como se fosse saltar. Ficou de repente
maior, os olhos mais brilhantes. O tronco se aprumou com arrogância,
rejuvenescido. Mas, aos poucos, foi afrouxando os músculos. Voltou a
diminuir de tamanho, a cabeça inclinada para o ombro. A voz começou
baixa.
— Você
não pode mais me ferir. Adriana. Ele também não conseguia. O seu
pai. Podia fazer o que quisesse, dizer o que quisesse. Não me
atingia mais. Ficava ai na minha frente com essa sua cara, a se
retorcer feito um vermezinho viciado e gordo...
— Emagreci
seis quilos.
— E
gordo. Nada mais me atinge, Adriana. É como se ele voltasse, nunca
vi uma coisa assim, vocês dois são iguais. Ele morreu e encarnou em
você, o mesmo jeito mole, balofo. Sujo. Na minha família todas as
mulheres são altas e magras. Você puxou a família dele, tudo com
cara redonda de anão, cara redonda e pescoço curto, olha aí a sua
cara. E a mãozinha de dedinho gordo, tudo anão.
Adriana
continuava segurando a maçaneta, o corpo vacilante, o risinho
frouxo. Apoiara-se numa perna, a outra ligeiramente flexionada.
Calçava
e descalçava o sapato decotado, com uma fivela de pedrinhas verdes.
— Acabou,
querida? Quero dormir.
A
luz da manhã já se insinuava na vidraça. A mulher fez um gesto
mortiço na direção da janela.
— Fiz
o que pude.
— Então,
ótimo, Tudo bem, agora queria dormir um pouquinho, posso?
— Um
instante ainda — disse a mulher e a voz subiu fortalecida,
veemente. — Ah, me lembrei agora, era Naldo, não era? O nome
daquele seu primo, o primeiro da lista Nem 15 anos você tinha,
Adriana, nem 15 anos e já se agarrando com ele na escada, emendada
naquele devasso.
— Ele
não era devasso.
— Não?
E aquelas doenças todas? Vivia dependurado em negras, viveu unos com
aquela empregada peituda, pensa que não sei?
— Ele
não era um devasso. E ele me amou.
— Amou...
Fugiu como um rato quando foram pilhados, o safado. Fugiu como
fugiram os outros, nenhum quis ficar, Adriana, nenhum. Vi dezenas
deles, casados, divorciados, toda uma corja te apertando nas
esquinas, detrás das portas, uma corja que nem dinheiro tinha para o
hotel. Um por um, fugiram todos.
— Ele
me amou.
Um
galo tentou prolongar mais seu canto e o som saiu difícil, rouco. A
mulher fez um movimento de ombros e o casaco escorregou para o
assento da cadeira. Apontou a cômoda.
— Vai,
abre aquela caixa ali em cima... Abriu? Tem dentro uma medalha de
ouro que foi da minha avó. Depois passou para minha mãe, esta me
ouvindo, Adriana? Antes de morrer minha mãe me entregou a medalha,
nós três nos casamos com ela. Tem também a corrente, procuro
depois. Você se casa amanhã, hum? Leva a medalha, é sua.
— Bonita,
mãe.
— Só
espero que não enegreça no seu pescoço — disse e fez um vago
gesto na direção da porta. — Por favor, agora suma da minha
frente.
Adriana
pegou a medalha que luzia no fundo da caixa de charão. Apertou os
olhos turvos para vê-la melhor. Depois, ainda olhando para a
medalha, fez com a outra mão um ligeiro aceno e foi saindo a
arrastar os pés. Fechou a porta, Quando já eslava no corredor
penumbroso, o gato veio ao seu encontro e no mesmo ritmo ondulante
entraram no quarto. O vestido estava estendido na cama e sobre o
vestido, o véu alto e armado, descendo em pregas até o chão. A luz
da manhã já era mais clara do que o halo amarelado da lâmpada
pendendo do teto. O gato pulou na cama.
— Dormir,
Romi, dormir — ela sussurrou fechando a janela. — Anoiteceu outra
vez, viu? Gato à-toa. Sacana. Vai amassar tudo — resmungou,
puxando o gato pela orelha. O gato miou, chegou a se levantar. Voltou
a se deitar enrodilhado no meio do véu. Adriana apoiou se na cama
enquanto abria a gaveta da mesa-de-cabeceira. Abriu o tubo de vidro e
fez cair duas pílulas na concha da mão. Engoliu as pílulas, fez
uma careta. — Não vai me buscar um copo d'água. não vai? Sacana,
amassou tudo. Podia me trazer água, tanta sede, porra. — Deitou-se
molemente na cama e apanhando uma ponta do véu. cobriu a cara com
ele. Fechou os olhos e tateou por entre o véu, tentando achar o
gato.
Desistiu.
Ficou olhando a lâmpada através das lágrimas. Você fugiu. Por que
você fugiu de mim na escada? Eu precisava tanto de você, precisava
tanto. Está me escutando? Você não devia me largar sozinha naquela
escada, foi horrível, amor, eu precisava tanto de você...
Arrepanhou
furiosamente o véu e sufocou nele os soluços. Atirou longe os
sapatos. Ficou rolando docemente a cabeça no travesseiro, se
acariciando no tecido da fronha. Agora as lágrimas corriam mais
espaçadas, mais limpas. — Eu não podia ficar sozinha naquela
escada, não podia — repetiu e abriu a mão para ver de novo a
medalha. Ardiam os olhos borrados. Esfregou-os e recomeçou a rir
baixinho. Voltou-se para o gato. — Você vai ganhar um presente,
seu sacana... Quer um presente, quer?
Levantou-se
cambaleante. Apertou os olhos contra as palmas das mãos e seguiu
estonteada por entre os móveis Abriu as portas do armário, abriu a
gaveta. Atirou as roupas no chão. — Uma fita, tinha aqui uma fila,
não tinha? Uma fitinha vermelha — choramingou e ficou de joelhos.
— Espera, espera... ih! achei, a glória, beleza de fila. Romi vai
vibrar, espera... deixa enfiar aqui nesta droga de argola, hein?
Assim... uma droga de argola apertada, tem que entrar neste buraco,
espera aí...
Quando
ela tombou para o lado, bateu a cabeça na quina da gaveta. Ficou
gemendo e esfregando a cabeça. Merda. Ainda de joelhos, foi
avançando ao lado da cama, segurando na mão fechada a fita com a
medalha, a outra mão tateando aberta por entre o véu ate alcançar
o travesseiro onde o gato cochilava. Agarrou-o com energia pelo rabo.
— Não foge não, seu sacana, você vai ganhar um presente! —
anunciou e sacudiu a medalha dependurada na fila. Concentrou-se no
esforço para respirar. Abriu a boca. Inclinou-se e repentinamente
prendeu o gato entre os cotovelos. Amarrou-lhe no pescoço a fita com
a medalha e abraçou-o com alegria. — O sacana me arranhou!...
Ganhou um puta presente e me arranhou, me arranhou... — ficou
repelindo. Com a ponta do dedo, fez a medalha oscilar. Ih! ficou
divino, olha aí, um vira-lata condecorado com ouro!...
O
corredor estreito continuava escuro, Adriana parou para segurar
melhor o gato que começou a se agitar.
— Calma.
Romi, calminha... — ela sussurrou, palmilhando devagar o assoalho
nas solas dos pés. Quando chegou ao quarto no extremo do corredor,
apoiou-se na parede e ficou ouvindo. Abriu a porta. Espiou. A mulher
conduzira sua cadeira até ficar defronte da janela, exposta ao vento
que fazia esvoaçar seus cabelos tão finos como fios despedaçados
de uma teia. Adriana ainda quis verificar se a medalha continuava
presa ao pescoço do gato. Impeliu-o com força na direção da
cadeira. Fechou a porta de mansinho.
Lygia
Fagundes Telles, in A estrutura da bolha de sabão
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