quarta-feira, 15 de julho de 2020

Quebra-cabeças



Gosto de armar quebra-cabeças. Nome errado. Eles não quebram a minha cabeça. Ao contrário, põem a minha cabeça no lugar. Nome mais apropriado deveria ser “junta-cabeças”. Todas as atividades que implicam arrumar, armar, juntar, montar, tecer têm uma função terapêutica. Elas ativam processos organizatórios das emoções e das ideias. Juntando as peças do meu junta-cabeça sobre a mesa vou juntando as peças do meu junta-cabeça interno. Pois eu comprei um de 1000 peças. Lindo cenário: céu azul, montanhas cobertas de neve, florestas... Comecei a armar. Mas o tempo era curto. A construção progredia lentamente. Especialmente naquelas partes de uma cor só. Fui ficando desanimado. Deixei as peças espalhadas sobre a mesa da sala por mais de um mês. Aí eu percebi que Deus estava me ajudando. O junta-cabeça estava se formando sem a minha intervenção. Pensei logo: “Miracolo!”. Algum anjo, talvez... Que nada. Era a Jai que me ajuda, dois dias por semana, arrumando as minhas bagunças. Aí começamos a fazer apostas: quem colocaria mais peças. Chegando ao final, não tive coragem de pôr a última peça. Deixei que ela gozasse o prazer do triunfo! O que me impressionou foi a inteligência da Jai. Porque as atividades necessárias para se armar um junta-cabeça colocam em ação uma série de potências intelectuais, que incluem a imaginação, a identificação gestáltica de padrões até a abstratíssima função lógica de identificar ângulos, linhas e tamanhos. Pensei que a Jai pode ser muito mais que uma faxineira. Ela só tem o segundo ano primário. Animei-a a continuar os estudos. Ela está se preparando para fazer o supletivo. Quanto ao junta-cabeça de 1000 peças está de novo na caixa, até que me disponha a medir forças com ele de novo.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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