quinta-feira, 16 de julho de 2020

Bola ou búrica?


É difícil achar bolas de gude. Todo mundo mora no asfalto, a cidade está uma merda, não existe mais chão de terra.
Mas, falando da bola de gude, o único lugar que vende é a loja do seu Pereba. A gente quando fala com ele chama o Pereba de Pereira, mas ele é conhecido como Pereba, e não gosta de ser chamado assim, fica furioso. Pereba é uma espécie de sarna, uma coisa que dá na pele e parece que não tem cura, e o pior é que pega, e o Pereba tem essa coisa, ninguém pode encostar nele, por isso o Pereba nunca casou, e se isso por um lado é bom, pois toda mulher casada é um pentelho, menos a mãe da gente, é claro, por outro é ruim, pois o Pereba não consegue ninguém para afogar o ganso.
Felizmente aqui neste subúrbio a gente tem uma porção de lugares de terra batida onde podemos cavar em linha reta os três buracos do jogo. Meu nome é Zé e eu sou o melhor de todos, mas ultimamente mudou para a vizinhança um crioulo chamado Anderson, e o puto é bom, você pergunta bola ou búrica, búrica é o buraco no chão, e o Anderson quase sempre diz bola, e com uma pontaria certeira pra caralho acerta com a bola dele a minha bola, jogando ela para longe, e depois joga a dele dentro da búrica.
Todo mundo sabe como se joga bola de gude, o sujeito coloca a bola no dedo indicador dobrado e com o polegar faz a bola correr pelo chão, para acertar outra ou o buraco.
Esqueci de dizer que o puto do Anderson é canhoto. Esses canhotos são foda, eu demorei para descobrir os macetes dele.
Então veio o campeonato, tinha gente do meu bairro e de mais três outros, e o campeão não ia ganhar nenhum dinheiro, mas ia ficar famoso e assim podia pegar as melhores gurias da área. Eu estava de olho na Marlene, ela não dava bola para mim, mas se eu fosse o campeão ela daria. Dar bola e mais alguma coisa, a bunda dela era de fechar o comércio.
Durante o campeonato, eu fui eliminando os meus adversários, até que ficaram dois para a final. Eu e o puto do Anderson.
Um montão de gente foi assistir à partida. Marlene estava lá e aquilo me perturbou. Pensando nela eu já havia tocado uma porção de punhetas.
O jogo foi duro. A partida era de cinco pontos. Eu suava nas mãos e aquilo atrapalhava o meu jogo. Anderson fez dois a zero, puta merda, ou eu reagia ou me fodia em copas. Fiz dois buracos, empatamos. Anderson fez o terceiro. Eu empatei. Anderson fez o quarto, o puto estava na bica para ganhar o campeonato. Então eu me concentrei e fiz duas búricas seguidas.
Marlene correu e me abraçou. Anderson ficou jururu num canto, parecia até que tinha ficado corcunda.
Comi Marlene naquela noite. Ela morava com a avó, uma velha coroca surda.
Quando cheguei em casa, pela manhã, encontrei minha mãe chorando. Meu pai havia sido preso. Esqueci de dizer que o meu pai vendia maconha nos trens da Central. E que eu tenho dois irmãos pequenos, um de seis anos e outro de oito.
Fui procurar o seu Eleutério, o cara que fornecia a maconha ao meu pai. Disse a ele que enquanto o velho estivesse em cana eu ia vender a erva no lugar dele.
Quantos anos você tem?”
Dezoito.”
Dezoito?”
Quer dizer, vou fazer.”
Mentira, eu tinha 13 anos, mas era um moleque grande.
Seu Eleutério passou a me fornecer a erva. Ela era batizada, mas maconha pura é difícil de encontrar.
Quando o meu pai saiu do xadrez eu continuei ajudando nos trens da Central.
A bola de gude foi pro brejo, eu não tenho tempo para jogar. Mas estou ganhando uma graninha boa, e posso dar presentes para a Marlene.
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

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