O
cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser
contada e descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. A mão de
Gigito conduziu o desvistado por tempos e idades. Aquela mão era
repartidamente comum, extensão de um no outro, siamensal. E assim
era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco dedos e
eram os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão.
O
cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimônia no
viver. O sempre lhe era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste
modo:
— Tenho
que viver já, senão esqueço-me.
Gigitinho,
porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele
minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era
mais profícua que papaeira. O cego enchia a boca de águas:
— Que
maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito!
A
mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim
estava como nunca esteve S. Tomé: via para não crer. O condutor
falava pela ponta dos dedos. Desfolhava o universo, aberto em folhas.
A ideação dele era tal que mesmo o cego, por vezes, acreditava ver.
O outro lhe encorajava esses breves enganos:
— Desbengale-se,
você está escolhendo a boa procedência!
Mentira:
Estrelinho continuava sem ver uma palmeira à frente do nariz.
Contudo, o cego não se conformava em suas escurezas. Ele cumpria o
ditado: não tinha perna e queria dar o pontapé. Só à noite, ele
desalentava, sofrendo medos mais antigos que a humanidade. Entendia
aquilo que, na raça humana, é menos primitivo: o animal.
— Na
noite aflige não haver luz?
— Aflição
é ter um pássaro branco esvoando dentro do sono.
Pássaro
branco? No sono? Lugar de ave é nas alturas. Dizem até que Deus fez
o céu para justificar os pássaros. Estrelinho disfarçava o medo
dos vaticínios, subterfugindo:
— E
agora, Gigitinho? Agora, olhando assim para cima, estou face ao céu?
Que
podia o outro responder? O céu do cego fica em toda a parte.
Estrelinho perdia o pé era quando a noite chegava e seu mestre
adormecia. Era como se um novo escuro nele se estreasse em nó cego.
Devagaroso e sorrateiro ele aninhava sua mão na mão do guia. Só
assim adormecia. A razão da concha é a timidez da amêijoa? Na
manhã seguinte, o cego lhe confessava: se você morrer, tenho que
morrer logo no imediato. Senão-me: como acerto o caminho para o céu?
Foi
no mês de dezembro que levaram Gigitinho. Lhe tiraram do mundo para
pôr na guerra: obrigavam os serviços militares. O cego reclamou:
que o moço inatingia a idade. E que o serviço que ele a si prestava
era vital e vitalício. O guia chamou Estrelinho à parte e lhe
tranquilizou:
— Não
vai ficar sozinhando por aí. Minha mana já mandei para ficar no meu
lugar.
O
cego estendeu o braço a querer tocar uma despedida. Mas o outro já
não estava lá. Ou estava e se desviara, propositado? E sem água
ida nem vinda, Estrelinho escutou o amigo se afastar, engolido,
espongínquo, inevisível. Pela pimeira vez, Estrelinho se sentiu
invalidado.
— Agora,
só agora, sou cego que não vê.
No
tempo que seguiu, o cego falou alto, sozinho como se inventasse a
presença de seu amigo: escuta, meu irmão, escuta este silêncio.
O erro da pessoa é pensar que os silêncios são todos iguais.
Enquanto não: há distintas qualidades de silêncio. É assim o
escuro, este nada apagado que estes meus olhos tocam: cada um é um,
desbotado à sua maneira. Entende, mano Gigito?
Mas
a resposta de Gigito não veio, num silêncio que foi seguindo, esse
sim, repetido e igual. Desamimado, Estrelinho ficou presenciando
inimagens, seus olhos no centro de manchas e ínvias lácteas. Aquela
era uma desluada noite, tinturosa de enorme. Pitosgando, o cego
captava o escuro em vagas, despedaços. O mundo lhe magoava a
desemparelhada mão. A solidão lhe doía como torcicolo em pescoço
de girafa. E lembrou palavras do seu guia:
— Sozinha
e triste é a remela em olho de cego.
Com
medo da noite foi andando, aos tropeços. Os dedos teatrais
interpretavam ser olhos. Teimoso como um pêndulo foi escolhendo
caminho. Tropeçando, empecilhando, acabou caído numa berma. Ali
adormeceu, seus sonhos ziguezagueram à procura da mão de Gigitinho.
Então
ele, pela primeira vez, viu a garça. Tal igual como descrevera
Gigitinho: a ave tresvoada, branca de amanhecer. Latejando as asas,
como se o corpo não ocupasse lugar nenhum.
De
aflição, ele desviou o vazado olhar. Aquilo era visão de chamar
desgraças. Quando a si regressou lhe parecia conhecer o lugar onde
tombara. Como diria Gigito: era ali que as cobras vinham recarregar
os venenos. Mas nem força ele coletou para se afastar.
Ficou
naquela berma, como um lenço de enrodilhada tristeza, desses que
tombam nas despedidas. Até que o toque tímido de uma mão lhe
despertou os ombros.
— Sou
irmã de Gigito. Me chamo Infelizmina.
Desde
então, a menina passou a conduzir o cego. Fazia-o com discrição e
silêncios. E era como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a
visão. Porque a miúda não tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela
descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade. Aquele mundo
a que o cego se habituara agora se desiluminava. Estrelinho perdia os
brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de
queixar. Fraco, ele careceu que ela o amparasse já não apenas de
mão mas de corpo inteiro. De cada vez, ela puxava o cego de encontro
a si. Ele foi sentindo a redondura dos seios dela, a mão dele já
não procurava só outra mão. Até que Estrelinho aceitou, enfim, o
convite do desejo.
Nessa
noite, por primeira vez, ele fez amor, embevencido. Num instante,
regressaram as lições de Gigito. O pouco se fazia tudo e o instante
transbordava eternidades. Sua cabeça andorinhava e ele guiava o
coração como voo de morcego: por eco da paixão. Pela primeira vez,
o cego sentiu sem aflição o sono chegar. E adormeceu enroscado
nela, seu corpo imitando dedos solvidos em outra mão.
A
meio da noite, porém, Infelizmina acordou, sobreassaltada. Tinha
visto a garça branca, em seu sonho. O cego sentiu o baque, tivessem
asas embatido no seu peito. Mas, fingiu sossego e serenou a moça.
Infelizmina voltou ao leito, sonoitada.
De
manhã chega a notícia: Gigito morrera. O mensageiro foi breve como
deve um militar. A mensagem ficou, em infinita ressonância, como
devem as feridas da guerra. Estranhou-se o seguinte: o cego reagiu
sem choque, parecia ele já sabendo daquela perca. A moça, essa,
deixou de falar, órfã de seu irmão. A partir dessa morte ela só
tristonhava, definhada. E assim ficou, sem competência para reviver.
Até que a ela se chegou o cego e lhe conduziu para a varanda da
casa. Então, iniciou de descrever o mundo, indo além dos vários
firmamentos. Aos poucos foi despontando um sorriso: a menina se
sarava da alma. Estrelinho miraginava terras e territórios. Sim, a
moça, se concordava. Tinha sido em tais paisagens que ela dormira
antes de ter nascido. Olhava aquele homem e pensava: ele esteve em
meus braços antes da minha atual vida. E quando já havia
desenvencilhado da tristeza ela lhe arriscou de perguntar:
— Isso
tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde?
E
o cego, em decisão de passo e estrada, lhe respondeu:
— Venha,
eu vou-lhe mostrar o caminho!
Mia
Couto, in
Estórias abensonhadas
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