segunda-feira, 20 de julho de 2020

Cem anos


Quem disse a Manuel que ele naquele dia fazia cem anos foi a sua vizinha, dona Adelina.
Como você sabe?”, perguntou Manuel.
Sei a idade de todos os vizinhos. Quer que eu lhe diga?”
Manuel foi até o cubículo da casa que ele chamava de escritório, fuçou a papelada e achou a certidão. Dona Adelina estava certa. Ele fazia cem anos naquele dia.
Não vai comemorar? Cem anos merecem uma comemoração”, disse dona Adelina, quando se encontraram novamente.
Comemorar como? Todos os meus parentes e amigos morreram.”
Manuel morava na mesma casa há muitos anos. Os móveis eram os mesmos, os livros eram os mesmos, só as toalhas, os lençóis e as cuecas não eram muito velhos. Até o clister era o mesmo. Antigamente as coisas duravam, pensou Manuel, agora todo ano sai uma nova versão do mesmo produto, dizem que esse é um método de comércio denominado obsolescência planejada. Então, subitamente lembrou que clister era uma palavra que vinha do grego, significando seringa.
Ele sofria de prisão de ventre e fazia o clister diariamente. O seu aparelho era uma espécie de jarra de vidro, com uma pequena torneira que abria e fechava, na qual era colocado um tubo comprido de borracha com um recipiente na ponta. Ele enchia a jarra com um líquido especial e deitado sobre o lado esquerdo introduzia o recipiente no ânus e abria a torneira da jarra, permitindo que o líquido entrasse nos seus intestinos, até sentir vontade de evacuar.
Mas essa não pode ser a maneira de comemorar os meus cem anos, eu faço isso há dezenas e dezenas de anos, pensou.
Cem anos não se comemoram. Cem anos de quê? A vida é um sofrimento contínuo, o corpo sofre, a mente sofre, doenças — e ele pensou em todas as doenças que existiam, eram tantas que davam para encher um livro de quinhentas páginas. Era isso que ele ia comemorar?
Então teve uma ideia. A melhor maneira de comemorar cem anos é morrendo na cama sem incomodar ninguém.
Vou deitar e morrer”, decidiu. Deitou na cama e morreu. Mas antes teve a consciência de uma sensação de bem-estar. Ele estava feliz.
Rubem Fonseca, in Histórias curtas

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