Hoje
fui ao túmulo de Gina e de longe já vi as rosas vermelhas espetadas
na jarra do lado esquerdo, Oriana veio ontem. Não combinamos nada, é
evidente, mas a jarra do lado esquerdo ficou sendo a dela, a jarra da
direita é das minhas rosas brancas. Que já murcharam, as brancas
duram menos. Acendi um cigarro. É proibido fumar, eu vi escrito por
aí. E o que mais é proibido, viver? Fiquei um tempo olhando suas
rosas vermelhonas, completamente desabrochadas. Um pouco mais de sol
nessas corolas e em meio do perfume virá aquele cheiro que vem dos
mortos quando também eles começam a amadurecer. Não nas narinas!
eu disse. Fui buscar o corpo depois da autópsia, já não era mais a
pequena Gina, agora era o corpo
com aquele algodão atochado no nariz, Tira isso! O enfermeiro
obedeceu, apático, tudo na sala era assim neutro mas limpo. Sua
filha? ele perguntou. Fiz que sim com a cabeça e então me
recomendou, Caso precise, a senhora depois arruma outro algodão. Não
precisou, até o fim Gina ficou com suas narinas livres para voltar a
respirar se quisesse. Não quis. Está certo, foi feita a sua
vontade, ela era voluntariosa, quando resolvia uma coisa, hein?
Apanhei
no chão o papel cinza-prateado da floricultura, logo aqui adiante há
um cesto metálico e no cesto está escrito Lixo,
este é um cemitério ordeiro. A desordeira é Oriana, com seus
dedinhos curtos, parece que estou vendo os dedinhos de unhas roídas
amarfanhando raivosamente o papel que virou esta bola dura, não se
conforma com a morte. Ah, que coincidência, porque também eu não
me conformo, a diferença apenas é que você gosta de fazer sujeira,
Você é suja! Um casal que vinha pela alameda ouviu e parou
assustado. Jogo longe o cigarro, faço cara compungida e finjo que
rezo enquanto me inclino diante da jarra das rosas vermelhas. Choveu,
elas ficaram encharcadas. Depois veio o sol e as vermelhonas se
fartaram de calor, obscenas de tão abertas. Ao anoitecer vão
parecer viçosas mas amanhã certamente já estarão escuras, com
aquele vermelho-negro bordejando as pétalas. Sujas, repito bem
baixinho porque o casal de velhos ainda continua por perto,
comentando a beleza do ipê-amarelo que floriu numa sepultura de cal
recente. A terra aqui é rica, tenho vontade de informar ao casal de
idiotas, vergados de velhice e ainda alegrinhos, oh! as flores, os
passarinhos. Vou com a minha jarra até a torneira mas antes deixo no
cesto o ramo murcho das minhas rosas brancas e mais o papel que
Oriana largou no chão. Desembrulho os botões que acabei de trazer,
os caules duros, as corolas arrogantes de tão firmes – não é
mesmo curioso? Gina tinha essa mesma postura altiva de bailarina se
preparando para entrar no palco, a cabeça pequena, a testa pura.
Artificial, sim, dissimulada mas querendo parecer natural, as
bailarinas são dissimuladas como os próprios seios aplacados sob o
corpete. Os gatos dissimulam feito as bailarinas, andou por casa uma
gatinha de telhado que Gina encontrou na esquina, apaixonou-se pela
gatinha, Filomena! Filô, Filô! E a gatinha vinha correndo e
berrando com aquele rabo aceso, uma antena. Diante do pires de leite,
a dissimulação: olhava para um lado, para o outro, desinteressada.
Fingindo não estar com o menor apetite. Quando ficou no cio,
desapareceu. E Gina aos prantos, chamando em vão, todos os dias
deixava no jardim o leite, a carne. Estava no cio, queria um gato, eu
avisei e Gina baixou aqueles olhos de um azul inocente. Não,
mãezinha, ela ia ser freira. Cheguei a rir, uma gata freira? Mas
Gina não estava fazendo graça, estava séria enquanto guardava na
sacola as suas sapatilhas, resolvera entrar para uma escola de
bailado clássico. Foi por essa época que conheceu Oriana, a dos
dedinhos. Começou então a se interessar por letras. Letras, Gina?
É, letras. Era o que a outra estudava. Você é que sabe, respondi.
Sempre concordei com tudo e adiantava discordar?
Deixo
a minha jarra com os seus botões empertigados ao lado das rosas de
Oriana e penso agora que essas jarras ficaram grandes demais para um
túmulo tão pequeno, Gina era pequena. A pequena Gina, digo e me
sento na beirada da lousa, os cemitérios deviam ter cadeiras. Mas
assim isto aqui não virava logo uma festa? Com a chegada da noite, a
pequena Gina de sapatilhas rosadas a deslizar dançarinando por entre
os túmulos e aquele lá do retrato, o cabelo encaracolado e a
gravata preta de laçarote, um pianista a tocar o seu Prelúdio e o
político, aquele da escultura pomposa com os braços abertos na
promessa interrompida, ansioso por continuar o seu discurso – mas
não seria mais lógico cada qual cumprindo até o infinito o ofício
da paixão? Este enorme espaço perdido, todo mundo amontoado lá
fora e aqui a imensidão desabitada. Respeito pelas almas? Mas onde
estão essas almas? Amasso devagar o papel de seda que embrulhava o
meu ramo até o papel virar a bola que guardo no bolso. E também eu,
lúcida mas participando da farsa. Está certo, já entendi, preciso
representar. Mas representar para quem se a única vida que resta
está nessas árvores. Nesta grama que rompe com fúria nos canteiros
mas perde para a pedra, é o triunfo do mau gosto na pedra das
estátuas. Das capelas. Mas os cemitérios têm mesmo que ser
românticos, disse Gina. Voltávamos do enterro do pai e agora me
lembro que fiz uma observação que a desgostou, era qualquer coisa
em torno desse ritual das belas frases, das belas imagens sem a
beleza. Ela com a sua mágoa e eu com a minha impaciência, ah, a
mentira das superfícies arrumadas escondendo lá no fundo a
desordem, o avesso desta ordem.
Lygia
Fagundes Telles,
in A
noite escura e mais eu
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