Novidade
Castigo era filha de Verónica Manga e do mineiro Jonasse Nhamitando.
Lhe apelidaram de Castigo pois ela viera ao mundo como uma punição.
Se adivinhou logo na nascença pelo azul que a menina trazia nos
olhos. Negra, filha de negros: de onde vinha tal azul?
Iniciemos
pela moça: ela era espantadamente bela, com face de invejar aos
anjos. Nem água fosse mais cristalinda. O porém dela, contudo: era
vagarosa de mente, o pensamento parecia nela não pernoitar.
Ficara-se assim, desacertada, certa uma vez em que, já moça, foi
atacada de convulsões.
Nessa
noite, Verónica estava sentada na varanda quando sentiu o aranhiçar
da insónia em seu peito.
—
Esta
noite vou contar estrelas, pressentiu-se.
A
noite já roía as unhas à madrugada foi quando aconteceu. No
cantinho da casa, a moça se despertou, em espasmos e esticões.
Parecia a carne se queria soltar da alma. A mãe, na adivinhação
das sombras, sentiu o surdo aviso: que foi? Leve como um susto,
acorreu ao leito de Novidadinha. Em casa de pobre tudo está certo,
conforme no arrumo ou desalinho. Verónica Manga atravessou o escuro,
evitou caixotes e latões, saltou enxadas e sacos a pontos de se
acercar da filha e lhe ver o braço, erguido como drapejante
bandeira. Verónica nem chamou o pai, não merecia a pena suspender o
descanso dele.
Só
na seguinte manhã ela ao homem anunciou o acontecido. Ele se
preparava para despegar para o trabalho, em véspera de descida ao
fundo da montanha. Parou na porta, reconsiderou intenção. Jonasse
Nhami-tambo, todo pai, foi ao quarto da menina e lhe encontrou,
parada, só com vontade de sossego. Sem tirar a áspera luva passou
uma carícia pelo rostinho dela. Despedia-se daquela outra, a que já
fora sua menina? Depois, o pai se afastou em modos da nuvem que se
aparta da água.
Passou-se
o tempo, num abrir sem fechar de olhos. Novidade crescia, sem
novidade. Os pais confirmavam e se conformavam: aquela filha fechara
o ventre de Verónica. Não era filha única: era filha-nenhuma,
criatura de miolo miudinho. Jonasse era homem bondoso, não abandonou
Verónica. E a filha, naquele pacto com o vazio, dedicava amores e
ternuras a seu pai. Não que ela se explicasse em perceptíveis
palavras. Mas pelo modo como ela esperava, suspensa, a chegada do
mineiro. Enquanto durasse o turno dele, a menina se perplexava, sem
comer nem beber. Só depois de o pai retornar a menina voltava a
atinar seu rosto e, em sua voz de riachinho, se adivinhavam cantigas
que ninguém, senão ela, conhecia. E havia ainda as prendas que ela
para ele recolhia: bizarras florinhas, da cor de nenhum outro azul
que não fosse o encontrável em seus olhos. Ninguém nunca soube
onde ela recolhia tais pétalas.
Muitas
noites além, a família repadeceu os acontecimentos. Jonasse não se
encontrava. O mineiro esburacava a terra, em turno noturno. Em casa,
a mãe ainda deixou seus olhos sobrarem na copa da luz do xipefo.
Costurava tecido nenhum, roupinhas para um filho que, conforme o
sabido, nunca haveria de vir. Novidadinha, a seu lado, dormitava. Foi
quando a moça se franziu, convulsiva, em epilapsos. A mãe,
repentina, acudiu. No sobressalto, ela desmanchou a claridade,
entornando luz e lamparina. Enquanto desalvoroçava a menina, lábios
e sopros, Verónica Manga procurou os fósforos sobre a caixa. Só
então foi chamada a um barulho enlameado que chegava de fora, lá da
montanha. Era o quê? A mina explodindo? Céus, se arrepiou. E
Jonasse, seu marido?
A
mulher zululuava pela casa, num corre-morre, de aflição para susto,
mosca em rabo de boi. E vieram as maiores explosões. Espreitada da
janela, a montanha parecia o pangolim cuspidor de incêndios.
Desabariam rochas e penedos por cima das casas? Não, a montanha,
aquela, tinha muita consistência. E Jonasse? A mulher sabia que
devia esperar pela manhã para saber novas de seu marido. Mas a
menina se antecipou à claridade. Em silêncio recolheu seus
pequenitos bens em cestinho e saco. Depois, arrumou as pertenças da
mãe na velha mala. De sua boca saíram as magras palavras, em suave
ordem:
—
Vamos,
mãe!
Sem
pensar, a mãe abandonou o seu lugar, ali onde ninhara por plenos
anos. E se deixou conduzir pela mão da menina, confiante em não se
sabe qual sapiência dela. No caminho, as duas se entrecruzaram com
uns alguns, fugidios como elas. E Verónica lhes perguntou:
—
Isso
que se escuta: é o quê?
Não
era a mina. Eram explosões militares, a guerra que chegava. E nossos
maridos, que lugar é o deles se salvarem?
—
Não
há tempo. Suba no camião, lhe responderam.
E
subiram. Verónica acomodou melhor suas coisas que a si própria, fez
sentar Novidade em cima do cesto. E o motor girou, rodando mais lento
que seus olhos na ânsia de ver aparecer Jonasse, correndo entre os
fumos e zonzeiras. O camião partiu, somando as demais poeiras e
explosões. A mãe fitou a filha, o sossego de seu rosto, seu sujo
vestido. O que ela fazia? Cantarolava. No flagrante de toda aquela
voragem, a moça peneirava alegriazinhas em cantigas de surdina.
Desenvenenava o tempo, sempre grávido de desgraça?
No
meio de bombas e tiros, o camião progrediu até passar defronte da
mina onde Jonasse trabalhava. Então, a menina, desafiando o
andamento do momento, saltou para o desaconselhável chão. Avançou
umas passadas, endireitando as rugas de seu vestidinho, se virou para
trás para dedicar uma delicadeza a sua mãe. Em espanto, o veículo
estacou. Novidadinha retomou o passo, cruzando a estrada em certo e
exposto perigo. O camião apitava, buzina em fúria. Que ali se
demorava apenas a morte. A moça não parecia nem ouvir. Estava na
estrada como se ela fosse seu inteiro caminho. No abecedário de seus
passos se via não haver arrogância, nem proclamação. O estar-se
ruando, atrapalhando o caos, não era desafio mas singela distração.
Ela fazia valer o azul de seus olhos. O camionista, nervoso, a chamou
por última vez. E os restantes gritavam para a mãe impor ordem de
regresso. Mas Verónica não mexeu palavra.
Sobre
um monte de areias tiradas da mina, Novidadinha se debruçou para
colher flores silvestres, dessas que espreitam nas bermas. Escolhia
com o vagar de cemitério. E parou frente a umas azulzinhas, de igual
cor de seus olhos. O camião, desistido de esperar, acossado por
afligidas vozearias, repentinou-se estrada afora. A mãe teimou
atenção em sua filha, fosse querer saber o último desenho de seu
destino. O que se passou, quem sabe, só ela viu. Lá, entre a
poeira, o que sucedia era as flores, aquelas de olhar azul, se
encherem de tamanho. E, num somado gesto, colherem a menina. Pegaram
Novidadinha por suas pétalas e a puxaram terra-abaixo. A moça
parecia esperar esse gesto. Pois ela, sempre sorrindo, se susplantou,
afundada no mesmo ventre em que via seu pai se extinguir, para além
das vistas, para além do tempo.
Mia
Couto,
in Estórias
abensonhadas
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