Todas
as coisas “boas” foram noutro tempo más; todo o pecado original
veio a ser virtude original. O casamento, por exemplo, era tido como
um atentado contra a sociedade e pagava-se uma multa, por ter tido a
imprudência de se apropriar de uma mulher (ainda hoje no Camboja o
sacerdote, guarda dos velhos costumes, conserva o jus
primae noctis).
Os sentimentos doces, benévolos, conciliadores, compassivos, mais
tarde vieram a ser os “valores por excelência”; por muito tempo
se atraiu o desprezo e se envergonhava cada qual da brandura, como
agora da dureza.
A
submissão ao direito: oh! que revolução de consciência em todas
as raças aristocráticas quando tiveram de renunciar à vingança
para se submeterem ao direito! O “direito” foi por muito tempo um
vetitum,
uma inovação, um crime; foi instituído com violência e opróbrio.
Cada
passo que o homem deu sobre a Terra custou-lhe muitos suplícios
intelectuais e corporais; tudo passou adiante e atrasou todo o
movimento, em troca teve inumeráveis mártires; por estranho que
isto hoje nos pareça, já o demonstrei na Aurora,
aforismo 18: “Nada custou mais caro do que esta migalha de razão e
de liberdade, que hoje nos envaidece”. Esta mesma vaidade nos
impede de considerar os períodos imensos da “moralização dos
costumes” que precederam a história capital e foram a verdadeira
história, a história capital e decisiva que fixou o caráter da
humanidade. Então a dor passava por virtude, a vingança por
virtude, a renúncia da razão por virtude, e o bem-estar passivo por
perigo, o desejo de saber por perigo, a paz por perigo, a
misericórdia por opróbrio,
o trabalho por vergonha, a demência por coisa divina, a conversão
por imoralidade e a corrupção por coisa excelente.
Friedrich
Nietzsche,
in
A Genealogia da Moral
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