terça-feira, 21 de julho de 2020

Do pecado à virtude

Todas as coisas “boas” foram noutro tempo más; todo o pecado original veio a ser virtude original. O casamento, por exemplo, era tido como um atentado contra a sociedade e pagava-se uma multa, por ter tido a imprudência de se apropriar de uma mulher (ainda hoje no Camboja o sacerdote, guarda dos velhos costumes, conserva o jus primae noctis). Os sentimentos doces, benévolos, conciliadores, compassivos, mais tarde vieram a ser os “valores por excelência”; por muito tempo se atraiu o desprezo e se envergonhava cada qual da brandura, como agora da dureza.
A submissão ao direito: oh! que revolução de consciência em todas as raças aristocráticas quando tiveram de renunciar à vingança para se submeterem ao direito! O “direito” foi por muito tempo um vetitum, uma inovação, um crime; foi instituído com violência e opróbrio.
Cada passo que o homem deu sobre a Terra custou-lhe muitos suplícios intelectuais e corporais; tudo passou adiante e atrasou todo o movimento, em troca teve inumeráveis mártires; por estranho que isto hoje nos pareça, já o demonstrei na Aurora, aforismo 18: “Nada custou mais caro do que esta migalha de razão e de liberdade, que hoje nos envaidece”. Esta mesma vaidade nos impede de considerar os períodos imensos da “moralização dos costumes” que precederam a história capital e foram a verdadeira história, a história capital e decisiva que fixou o caráter da humanidade. Então a dor passava por virtude, a vingança por virtude, a renúncia da razão por virtude, e o bem-estar passivo por perigo, o desejo de saber por perigo, a paz por perigo, a misericórdia por opróbrio, o trabalho por vergonha, a demência por coisa divina, a conversão por imoralidade e a corrupção por coisa excelente.
Friedrich Nietzsche, in A Genealogia da Moral

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