terça-feira, 2 de junho de 2020

O Super-Homem das Alagoas

Ninguém sabe até hoje como o incêndio começou. O velho casarão, no centro da cidade, ardeu feito velho apaixonado por garotinha. A rua, deserta um segundo antes do primeiro grito, se encheu de palpiteiros, basbaques, gozadores...
O corpo de bombeiros demorou porque todos os telefones das imediações estavam com defeito. Alguns diálogos botavam mais lenha na fogueira:
Nunca entendi por que chamam esses caras de bravos soldados do fogo. Se ainda fosse da água...
Deve ser porque nunca tem água.
De fato, tinha mais cachaça na área que água da bica. Um carro-pipa fora providenciado, mas batera numa ambulância dirigida por um bêbado. Vários uniformes se desentendiam. Um comandante conservava prudente distância. Era um sujeito adiposo e inepto, ex-torturador e próspero comerciante no ramo de extintores especiais para prédios condenados. Dois policiais militares, que davam segurança à boca-de-fumo mais próxima, tentavam conter um chileno, radicado em Niterói, conhecido como El Apagadíssimo, que aparecia em toda sorte de sinistros, tentando tirar uma casquinha.
No auge da confusão, chegou a reportagem de TV e todo mundo começou a rasgar as roupas e a se sujar de fuligem pra aparecer na telinha. Um compositor interiorano radicado aqui compôs um tema na hora e deu declarações sobre a nova fase de seu trabalho. O refrão era: “ai, ai, ai, ai, ai, dantes os dentes rangerrugiam nos assíduos acidentes”.
Quando o espetáculo ameaçava perder o pique, um homem saiu das chamas com uma criança nos braços.
A plebe foi acometida por aquele colapso do senso crítico que antecede a exaltação de atos considerados virtuosos no consenso da mediocridade (dá-lhe, Blanc!).
Senhoras aureoladas de bobs, envoltas nas encardidas mortalhas dos roupões de ílorzinha, experimentaram, na libido atrofiada, o êxtase das protagonistas de novela. Parasitas e vadias viam nele o Salvador. De todas as bocas maltratadas, do fundo dos pulmões corroídos, das gargantas pustemadas, das línguas saburrosas, dos dentes cariados, ééé, brotou a palavara mágica, espécie de aborto espontâneo que acontece toda vez que a boçalidade é fecundada pela farsa:
Herói! Herói!
No dia seguinte, os jornais celebraram a vinda do novo Messias. Fotos indesmentíveis, como disse um Ministro, e editoriais candentes colocaram suaves cataplasmas na ferida nacional: um brasileiro íntegro.
A euforia fincara seus estandartes no coração da miséria. Os bares fervilhavam de palhaços que voltavam a crer em si mesmos. Donas de casa suspirosas encontravam motivação, alento – e até mesmo um certo tesãozinho – na figura redentora. Nunca o pavilhão auriverde drapejou tão garboso nos mastros de empresas antes maculadas pela corrupção. Economistas que serviram à ditadura militar diziam, modestamente, de olhos úmidos.
São os primeiros frutos da economia de mercado. Dom Saulo Castilho não perdeu a ocasião de perpetrar um soneto inesquecível. O final era assim:

Ao contrário do mulato mequetrefe
move-o o charme sutil de um grande chefe,
um Cristo a redimir o balneário.
Espelhem-se, medíocres operários,
que só se preocupam com o que comem
no saco elefantal do Super-Homem!”

O assessor de imprensa da Presidência da República anunciou o novo Imposto sobre Atos Heroicos.
Quarenta e oito horas depois do portento, a mãe da criança – uma menininha de dez anos que, infelizmente, faleceu por falta de atendimento médico – veio a público:
É minha filha que foi sequestrada mês passado quando meus outros sete filhos moireram fuzilados numa chacina lá no morro.
Nosso herói foi convidado a depor. Todos ansiavam pelo esclarecimento do lamentável equívoco. Mas, vida ingrata, a abstinência de cocaína a que se viu forçado o Cid Campedor pelo acúmulo de solenidades e homenagens, teve consequência inesperada: uma crise de choro e a confissão de co-autoria em inúmeros crimes. No caso em questão, a soldo de uma quadrilha de traficantes, mantinha a menina em cárcere privado, e, cedendo a impulsos bestiais, tinha acabado de agarrá-la quando ouviu os gritos de fogo.
Suplementos culturais publicaram matérias de vários especialistas em mente humana, unânimes quanto à intratabilidade do inconsciente. Um defendeu o uso de remédios. Todos defenderam os respectivos bolsos.
O tal compositor apareceu na TV, no horário vago entre dois pastores da Igreja da Graça Estelionatária., falou de seu novo trabalho e cantou o refrão de um hit inédito: “ai, ai, ai, ai, dentes de dantes já não mordem como antigamantes”.
Dom Saulo Castilho deu um pulinho no Vaticano, pra meter o pau na Teologia da Libertação.
O assessor de imprensa – já tá ficando chato, ô babaca! – deu marcha a ré.
Donas de casas frustradas passaram a bater nos filhos pra que não se transformassem num monstro igual aquele. E, cheias de ódio, persignavam-se.
Nos bares, piadas sem graça tentam fazer frente à ressaca.
Vosso um tanto amargo cronista cometerá o pecado da reiteração: com os heróis, todo cuidado é pouco. Às vezes, o valente que irrompe das chamas com a criança no colo não passa de um estuprador que não teve tempo de largar a vítima.
Mas, sei lá, não se desesperem. Como disse o Médici, vem aí a próxima Copa do Mundo.
Aldir Blanc, in Brasil passado a sujo

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