terça-feira, 2 de junho de 2020

Injeção letal

Fotograma do filme Monsieur Verdoux (1947), de Charles Chaplin

Eu era bem pequeno quando soube que seres humanos executavam outros. Não, não era matar. Sabia que havia muitas mortes assassinas e guerras. Mas “executar” é um jeito diferente de matar: jeito científico, frio, legal, morte que tranquiliza a sociedade.
Um nenezinho de vinte meses... Fora roubado do seu berço, filho do famoso aviador Charles Lindenberg... Foi encontrado morto e o suposto criminoso — digo “suposto” porque sua culpa nunca foi provada — afirmou sua inocência até o fim. Mas a sociedade precisa encontrar um culpado para se vingar. Toda execução é um ato de vingança.
Depois — anos da guerra fria, o mundo estava cheio de espiões comunistas —, um casal de cientistas, os Rosenberg, foi acusado de passar segredos atômicos para os soviéticos. Foram também mortos na cadeira elétrica.
Fico a imaginar o caráter, a alma de uma pessoa que se dedica a inventar uma máquina que será usada para matar com a bênção do Estado. Pergunto-me: Sua alma será pura ou assassina? Guillotin, inventor da guilhotina: sua alma, como seria ela? Ele nunca matou. Não foi um criminoso. Só criou um instrumento de matar.
Quem terá tido a ideia de uma “cadeira elétrica”? Terá sido inventada por uma pura explosão de criatividade individual ou sido construída por encomenda, por físicos, eletricistas e biólogos?
Imagino os últimos passos do condenado, as pernas trêmulas, o medo perpassando cada centímetro do seu corpo... Terminada a caminhada, o condenado terá de se assentar, e será amarrado para impedi-lo de qualquer quebra da etiqueta do momento. E a sua cabeça será coberta com um capuz para proteger as testemunhas do horror de ver o seu rosto. Que brilho sairá dos seus olhos enquanto seu corpo vai sendo atravessado por milhares de volts?
O outro de que me lembro foi Caryl Chessman, que passou muitos anos na prisão, chegando a diplomar-se em direito. Dessa vez o método foi outro: o prisioneiro amarrado numa cadeira, as testemunhas do lado de fora da câmara isolada, pastilhas de cianureto são jogadas dentro de um ácido. O vapor começa a subir. O condenado prende a respiração — a respiração será a morte e ele não quer morrer. Até que o corpo não resiste, respira... A cabeça tomba... Uma testemunha da execução de Caryl Chessman, que se tornara seu amigo, relatou que seu último gesto antes da inspiração mortífera foi uma piscada matreira de olho com um sorriso...
Pergunto: esse que foi executado hoje é o mesmo que cometeu um crime anos antes? O condenado no passado não será uma outra pessoa, inocente, no presente?
A execução de Teresa Lewis, numa das penitenciárias dos Estados Unidos, me fez pensar. Execução caridosa, hospitalar, indolor, por uma injeção letal... Perguntei-me, num impulso de humor negro, se todas as normas médicas haviam sido obedecidas... Desinfetaram o lugar onde a agulha ia ser introduzida para evitar alguma infecção?
Sua execução me fez lembrar uma outra, com que termina um filme de Charles Chaplin, Monsieur Verdoux (1947)...
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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