sexta-feira, 13 de março de 2020

“Que reste t’il...”

 Archie Shepp em ação

Fomos ouvir o saxofonista Archie Shepp no New Morning de Paris. Eu não tinha bem certeza do que ia encontrar. Sabia que Shepp vivia na França mas não tinha acompanhado sua carreira depois dos anos 60, quando ele e gente como os saxofonistas Ornette Coleman e Albert Ayres e o pianista Cecil Taylor radicalizaram o que John Coltrane começara com suas torrentes de som, e criaram o movimento Free Jazz. Shepp era o mais radical deles todos, o mais político, e quem fez a ligação mais direta entre a agressividade do novo jazz e o novo ativismo negro da época. Suas declarações eram tão incandescentes quanto os seus solos. Teve não poucos problemas com a polícia e se auto-exilou na Europa. Eu estava curioso para ver como ele envelhecera. No New Morning, tocou com um trio e dois músicos franceses convidados. Continua um ótimo tenorista, mas toca como se nem Coltrane nem ele, com 40 anos menos, tivessem existido. E a certa altura da apresentação pegou o microfone e cantou “Que reste t’il de nos amours”.
Se eu precisasse escolher a pessoa que eu menos esperava ver, um dia, cantando “Que reste t’il de nos amours”, seria Archie Shepp. O general Geisel, talvez. O Archie Shepp nunca. E no entanto lá estava ele, com seu francês de Nova York, perguntando o que restava dos nossos belos dias, sem alterar um acorde da canção para efeito de ironia ou suinguificação. Não duvido que ainda sobre muito dos velhos amores de Archie Shepp pela música contestatória e pela justiça para a sua raça (no seu repertório atual tem muita coisa africana), mas também é bom saber que, entre as coisas que 40 anos fazem com um velho revolucionário, está essa depuração de preconceitos: por que não “Que reste t’il de nos amours”? Depois de todas as causas e de todas as vanguardas as boas canções ainda estão lá, esperando para serem redescobertas. Ou talvez só se passe pelas causas e pelas vanguardas para poder cantar, um dia, “Que reste t’il de nos amours”, sem precisar dar satisfações a ninguém.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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