Archie Shepp em ação
Fomos
ouvir o saxofonista Archie Shepp no New Morning de Paris. Eu não
tinha bem certeza do que ia encontrar. Sabia que Shepp vivia na
França mas não tinha acompanhado sua carreira depois dos anos 60,
quando ele e gente como os saxofonistas Ornette Coleman e Albert
Ayres e o pianista Cecil Taylor radicalizaram o que John Coltrane
começara com suas torrentes de som, e criaram o movimento Free
Jazz. Shepp era o mais radical deles todos, o mais político,
e quem fez a ligação mais direta entre a agressividade do novo jazz
e o novo ativismo negro da época. Suas declarações eram tão
incandescentes quanto os seus solos. Teve não poucos problemas com a
polícia e se auto-exilou na Europa. Eu estava curioso para ver como
ele envelhecera. No New Morning, tocou com um trio e dois músicos
franceses convidados. Continua um ótimo tenorista, mas toca como se
nem Coltrane nem ele, com 40 anos menos, tivessem existido. E a certa
altura da apresentação pegou o microfone e cantou “Que reste t’il
de nos amours”.
Se
eu precisasse escolher a pessoa que eu menos esperava ver, um dia,
cantando “Que reste t’il de nos amours”, seria Archie Shepp. O
general Geisel, talvez. O Archie Shepp nunca. E no entanto lá estava
ele, com seu francês de Nova York, perguntando o que restava dos
nossos belos dias, sem alterar um acorde da canção para efeito de
ironia ou suinguificação. Não duvido que ainda sobre muito dos
velhos amores de Archie Shepp pela música contestatória e pela
justiça para a sua raça (no seu repertório atual tem muita coisa
africana), mas também é bom saber que, entre as coisas que 40 anos
fazem com um velho revolucionário, está essa depuração de
preconceitos: por que não “Que reste t’il de nos amours”?
Depois de todas as causas e de todas as vanguardas as boas canções
ainda estão lá, esperando para serem redescobertas. Ou talvez só
se passe pelas causas e pelas vanguardas para poder cantar, um dia,
“Que reste t’il de nos amours”, sem precisar dar satisfações
a ninguém.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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