sábado, 14 de março de 2020

Sexto sapato: a passividade perante a injustiça

Estamos dispostos a denunciar injustiças quando são cometidas contra a nossa pessoa, o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religião. Estamos menos dispostos quando a injustiça é praticada contra os “outros”. Persistem em Moçambique zonas silenciosas de injustiça, áreas onde o crime permanece invisível. Refiro-me, em particular, aos seguintes domínios:
à violência doméstica (40% dos crimes resultam de agressão doméstica contra mulheres);
à violência contra as viúvas;
à forma aviltante como, muitas vezes, são tratados os trabalhadores;
aos maus tratos infligidos às crianças.
Ficamos escandalizados com o anúncio que privilegiava candidatos de raça branca. Tomaram-se medidas imediatas e isso foi absolutamente correto. Contudo, existem convites à discriminação que são tão ou mais graves e que aceitamos como sendo naturais e inquestionáveis.
Tomemos esse anúncio do jornal e imaginemos que ele tinha sido redigido de forma correta e não racial. Será que tudo estava bem? Eu não sei se todos estão a par da tiragem do jornal Notícias. São 13 mil exemplares. Mesmo se aceitarmos que cada jornal é lido por cinco pessoas, temos que o número de leitores é menor que a população de um bairro de Maputo. É dentro deste universo que circulam convites para promoções e os acessos a oportunidades. Falei na tiragem mas deixei de lado o problema da circulação. Por que geografia restrita circulam as mensagens dos nossos jornais? Quanto de Moçambique é deixado de fora?
É verdade que esta discriminação não é comparável à do anúncio racista porque não é resultado de ação explícita e consciente. Mas os efeitos de discriminação e exclusão destas práticas sociais devem ser pensados e não podem cair no saco da normalidade. Esse “bairro” das 60 mil pessoas que tem acesso à informação é hoje uma nação dentro da nação, uma nação que chega primeiro, que troca entre si favores, que vive em português e dorme na almofada da escrita.
Um outro exemplo. Estamos administrando anti-retrovirais a cerca de 30 mil doentes com aids. Esse número poderá, nos próximos anos, chegar aos 50 mil. Isso significa que cerca de 1450000 doentes ficam excluídos de tratamento. Trata-se de uma decisão com implicações éticas terríveis. Como e quem decide quem fica de fora? É aceitável, pergunto, que a vida de 1,5 milhão de cidadãos esteja nas mãos de um pequeno grupo técnico?
Mia Couto, in Os sete sapatos sujos (Oração de Sapiência no ISCTEM, Maputo, 2006)

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