Estamos
dispostos a denunciar injustiças quando são cometidas contra a
nossa pessoa, o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religião.
Estamos menos dispostos quando a injustiça é praticada contra os
“outros”. Persistem em Moçambique zonas silenciosas de
injustiça, áreas onde o crime permanece invisível. Refiro-me, em
particular, aos seguintes domínios:
— à
violência doméstica (40% dos crimes resultam de agressão doméstica
contra mulheres);
— à
violência contra as viúvas;
— à
forma aviltante como, muitas vezes, são tratados os trabalhadores;
— aos
maus tratos infligidos às crianças.
Ficamos
escandalizados com o anúncio que privilegiava candidatos de raça
branca. Tomaram-se medidas imediatas e isso foi absolutamente
correto. Contudo, existem convites à discriminação que são tão
ou mais graves e que aceitamos como sendo naturais e inquestionáveis.
Tomemos
esse anúncio do jornal e imaginemos que ele tinha sido redigido de
forma correta e não racial. Será que tudo estava bem? Eu não sei
se todos estão a par da tiragem do jornal Notícias. São 13
mil exemplares. Mesmo se aceitarmos que cada jornal é lido por cinco
pessoas, temos que o número de leitores é menor que a população
de um bairro de Maputo. É dentro deste universo que circulam
convites para promoções e os acessos a oportunidades. Falei na
tiragem mas deixei de lado o problema da circulação. Por que
geografia restrita circulam as mensagens dos nossos jornais? Quanto
de Moçambique é deixado de fora?
É
verdade que esta discriminação não é comparável à do anúncio
racista porque não é resultado de ação explícita e consciente.
Mas os efeitos de discriminação e exclusão destas práticas
sociais devem ser pensados e não podem cair no saco da normalidade.
Esse “bairro” das 60 mil pessoas que tem acesso à informação é
hoje uma nação dentro da nação, uma nação que chega primeiro,
que troca entre si favores, que vive em português e dorme na
almofada da escrita.
Um
outro exemplo. Estamos administrando anti-retrovirais a cerca de 30
mil doentes com aids. Esse número poderá, nos próximos anos,
chegar aos 50 mil. Isso significa que cerca de 1450000 doentes ficam
excluídos de tratamento. Trata-se de uma decisão com implicações
éticas terríveis. Como e quem decide quem fica de fora? É
aceitável, pergunto, que a vida de 1,5 milhão de cidadãos esteja
nas mãos de um pequeno grupo técnico?
Mia
Couto, in Os sete sapatos sujos (Oração de Sapiência no
ISCTEM, Maputo, 2006)
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