domingo, 23 de fevereiro de 2020

Acerca da injustiça

Quem comete injustiça age impiedosamente. A natureza universal, tendo feito os seres racionais uns para os outros, para que uns ajudassem aos outros segundo seus merecimentos sem prejudicar-se de forma alguma; aquele que transgride esse propósito comete obviamente uma impiedade para com a mais venerável das divindades.
Quem mente também age impiedosamente para com a mesma divindade. A natureza universal é a natureza dos seres e os seres estão intimamente ligados a todas as coisas existentes. Além disso, chama-se também essa deusa de Verdade e ela é a causa primeira de todas as verdades. Então, aquele que mente voluntariamente age impiedosamente, pois enganando ele comete injustiça; o mesmo acontece com aquele que mente involuntariamente, enquanto destoa da natureza universal e enquanto a perturba combatendo a natureza do mundo. E combate contra ela o homem que se opõe à verdade contra si mesmo; ele havia recebido certas disposições da natureza e, negligenciando-as, agora não é mais capaz de distinguir o falso do verdadeiro.
E o homem que procura os prazeres como bens e que evita sofrimentos como males age impiedosamente. É inevitável, na verdade, que se acuse frequentemente a natureza universal de fazer uma partilha em desacordo com os méritos entre os maus e os bons, pois frequentemente ocorre que os maus vivem entre prazeres e entre as coisas que os produzem, ao passo que os bons vivem entre sofrimentos e entre as coisas que os produzem. Mais ainda: aquele que teme os sofrimentos temerá um dia alguma das coisas que acontecem no mundo; isso já é impiedade. E aquele que procura os prazeres não poderá se abster-se de cometer injustiça; e isso é evidente impiedade. Impõe-se, em relação às coisas a respeito das quais a natureza comum é indiferente (ela não teria criado umas e outras se não fosse indiferente a umas e outras), que aquele que desejam seguir a natureza devem identificar-se mentalmente com ela e permanecer indiferentes. Então, quem quer que não permaneça indiferente a dor e prazer ou morte e vida ou glória e mediocridade, cometerá evidente impiedade.
Digo que a natureza comum é indiferente a isso, ao invés de dizer que tudo isso resulta indiferentemente do íntimo encadeamento dos fatos e de suas consequências, em decorrência de um impulso originário da Providência, que, a certa altura da origem, teria tido o impulso de realizar o presente ordenamento do mundo, combinando certas razões das coisas por vir e determinando as forças capazes de produzir substâncias, transformações e sucessões como as presentes.”
Marco Aurélio, in Meditações

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