O
tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava
comigo, o tempo se espreguiçava provocadoramente, era um tempo só
de esperas, me guardando na casa velha por dias inteiros; era um
tempo também de sobressaltos, me embaralhando ruídos, confundindo
minhas antenas, me levando a ouvir claramente acenos imaginários, me
despertando com a gravidade de um julgamento mais áspero, eu estou
louco! e que saliva mais corrosiva a desse verbo, me lambendo de
fantasias desesperadas, compondo máscaras terríveis na minha cara,
me atirando, às vezes mais doce, em preâmbulos afetivos de uma
orgia religiosa: que potro enjaezado corria o pasto, esfolando as
farpas sanguíneas das nossas cercas, me guiando até a gruta
encantada dos pomares! que polpa mais exasperada, guardada entre
folhas de prata, tingindo meus dentes, inflamando minha língua,
cobrindo minha pele adolescente com suas manchas! o tempo, o tempo, o
tempo me pesquisava na sua calma, o tempo me castigava, ouvi clara e
distintamente os passos na pequena escada de entrada: que súbito
espanto, que atropelos, vendo o coração me surgir assim de repente
feito um pássaro ferido, gritando aos saltos na minha palma!
disparei na direção da porta: ninguém estava lá; investiguei os
arbustos destruídos no abandono do jardim em frente, mas nada ali se
mexia, era um vento parado, cheio de silêncio, nem mesmo uma tímida
palpitação corria o mato, a imaginação tem limites eu ainda pude
pensar, existia também um tempo que não falha! voltando ao quarto
onde eu ficava, mal entrei voei para a janela, espiando através da
fresta (Deus!): ela estava lá, não longe da casa, debaixo do
telheiro selado que cobria a antiga tábua de lavar, meio escondida
pelas ramas da velha primavera, assustadiça no recuo depois de um
ousado avanço, olhando ainda com desconfiança pra minha janela, o
corpo de campônia, os pés descalços, a roupa em desleixo cheia de
graça, branco branco o rosto branco e eu me lembrei das pombas, as
pombas da minha infância, me vendo também assim, espreitando atrás
da veneziana, como espreitava do canto do paiol quando criança a
pomba ressabiada e arisca que media com desconfiança os seus
avanços, o bico minucioso e preciso bicando e recuando ponto por
ponto, mas avançando sempre no caminho tramado dos grãos de milho,
e eu espreitava e aguardava, porque existe o tempo de aguardar e o
tempo de ser ágil (foi essa uma ciência que aprendi na infância e
esqueci depois) e acompanhava e ia lendo na imaginação as cruzetas
deformadas e graciosas, impressas nos seus recuos e nos seus avanços
pelos pés macios no chão de terra; e existia o tempo de ser ágil,
e era então um farfalhar quase instantâneo de asas quando a peneira
lhe caía sorrateira em cima, e minhas mãos já eram um ninho, e era
então um estremecimento que eu apertava entre elas enquanto corria
pelo quintal em alvoroço gritando é minha é minha e me detendo pra
conhecer melhor seus olhos pequenos e redondos, matreiros mas agora
em puro espanto, e arrancava-lhe com decisão as penas das asas,
cortando temporariamente seus largos voos, o tempo de surgirem novas
penas e novas asas, e também uma afeição nova, e era esse o doce
aprisionamento que a aguardava já quando de novo em condições de
pleno voo; e as pombas do meu quintal eram livres de voar, partiam
para longos passeios mas voltavam sempre, pois não era mais do que
amor o que eu tinha e o que eu queria delas, e voavam para bem longe
e eu as reconhecia nos telhados das casas mais distantes entre o
bando de pombas desafetas que eu acreditava um dia trazer também pro
meu quintal imenso; ela estava lá, branco branco o rosto branco e eu
podia sentir toda dubiedade, o tumulto e suas dores, e pude pensar
cheio de fé eu não me engano neste incêndio, nesta paixão, neste
delírio, e fiquei imaginando que para atraí-la de um jeito correto
eu deveria ter tramado com grãos de uva uma trilha sinuosa até o pé
da escada, pendurado pencas de romãs frescas nas janelas da fachada
e ter feito uma guirlanda de flores, em cores vivas, correr na velha
balaustrada do varandão que circundava a casa; existia o tempo de
aguardar, mas eu já tropeçava, voltando impaciente da janela,
chutei com violência a palha que eu, no bico, dia a dia, tinha
amontoado no meio do quarto, e foi uma ventania de cisco na cabeça,
por um instante me perdi naquele redemoinho, contemplando confuso a
agitação do meu próprio ninho: era a vida dentro do quarto! voltei
a espreitar pela fresta, e ela já não estava debaixo do telheiro e
eu já não estava dentro de mim, tinha voado pra porta de entrada: o
tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível,
demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele
ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de
medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento
preciso da transposição? que instante, que instante terrível é
esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço
concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já
desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente
do dia a dia para ser vida nos subterrâneos da memória; ela estava
agora diante de mim, de pé ali na entrada, branco branco o rosto
branco filtrando as cores antigas de emoções tão diferentes,
compondo com a moldura da porta o quadro que ainda não sei onde
penduro, se no corre-corre da vida, se na corrente da morte; e
ficamos assim um de frente para o outro, sem nos mexermos, mudos, um
nó cego nas nossas mentes, mas bastava que ela transpusesse a
soleira, era uma ciência de menino, mas já era uma ciência feita
de instantes, a linha numa das mãos, o coração na outra, não se
podia ser ágil tendo-se pela frente instantes de paciência, do
contrário seria um desabar prematuro ferindo a ave, que levantaria
um voo machucado em alvoroço; grão por grão, instante por
instante, mais manhosa era a pomba quanto mais próxima da peneira,
bicando o chão com firmeza, mas tremendo antes o pescoço, como o
braço de um monjolo sempre indeciso a meio caminho do seu destino; e
a cada bico e a cada ponto, tremendo depois as asas, ameaçando as
penas em recuo, até que, transpondo o arco da peneira, um doce
alimento faria esquecer, projetada na terra, a grade da sua tela; era
uma ciência de menino, mas era uma ciência complicada, nenhum grão
de mais, nenhum instante de menos, para que a ave não encontrasse o
desânimo na carência nem na fartura, existia a medida sagaz,
precisa, capaz de reter a pomba confiante no centro da armadilha;
numa das mãos um coração em chamas, na outra a linha destra que
haveria de retesar-se com geometria, riscando um traço súbito na
areia que antes encobria o cálculo e a indústria; nenhum arroubo,
nenhum solavanco na hora de puxar a linha, nenhum instante de mais no
peso do braço tenso.
Raduan
Nassar, in Lavoura Arcaica
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