Há
tempos apareceu uma teoria segundo a qual existiria uma “memória
da água”. A água reteria nas suas moléculas uma “lembrança”
recuperável de movimentos e efeitos. A teoria não foi provada, o
que é uma pena. Suas possibilidades poéticas eram imensas.
O
italiano Roberto Calasso, no seu livro Literatura e os deuses,
escreve sobre uma “onda mnemônica”, ou vaga de memória que
invade a nossa civilização, a intervalos, vinda do passado
clássico, com os deuses pagãos surfando em cima. (Esta imagem é
minha, não do Calasso, que é um cara sério.) Através da História,
ou nos deixamos inundar pela onda ou fugimos dela com braçadas
decididas.
A
Renascença foi uma “onda mnemônica” varrendo a idade das trevas
da nossa praia. Já a maré baixa da onda, segundo Calasso, aconteceu
na França do século XVIII, quando “as infantis fábulas gregas”,
junto com “o bárbaro Shakespeare e as sórdidas lendas bíblicas”
foram todas sumariamente dispensadas, como “o trabalho de um
esperto sacerdócio determinado a sufocar mentes potencialmente
esclarecidas no berço”, por gente como Voltaire. A onda voltou no
século XIX com Nietzsche, que quis recuperar o pensamento mítico
pré-cristão e costumava assinar suas cartas como “Dionísio”.
Os
deuses surfistas vindos do passado assumiam qualquer forma. Escreve
Calasso: “Muitas vezes eram reduzidos à mera existência de papel,
como alegorias morais, personificações, prosopopéias e outros
engenhos do arsenal retórico.” Ou eram “meros pretextos para o
lirismo, nada mais do que sons evocativos”. Em qualquer forma, seus
anfitriões modernos os mantinham sob controle, eufemismados e
disfarçados. Isto nas letras, porque nas artes plásticas houve uma
enchente: os deuses heróis tomaram conta e durante quatro séculos
foram sujeitos, ou no mínimo coadjuvantes, de toda a pintura e a
escultura ocidental. E dê-lhe sátiros e ninfas. Principalmente
ninfas. As ninfas trazem na “onda mnemônica” a forma mais antiga
e potencialmente mais perigosa de matéria artística, segundo
Calasso, que é a obsessão. Homero conta que Apolo, o Caçador
Encantado, descobre uma ninfa e uma grande serpente guardando uma
vertente de água doce. Tanto a ninfa quanto a serpente são
aterradoras, pois o que elas guardam é uma fonte de sabedoria e
poder que dará a Apolo o domínio do mistério fluido da vida pela
arte, mas em troca o transformará num possuído. Ninfa e serpente
são a mesma coisa, a sedução pela arte e a danação do artista na
mesma conquista. A correspondência com a “sórdida lenda bíblica”
do Paraíso perdido não precisa ser enfatizada.
Nymphe,
em grego, quer dizer “menina pronta para o casamento” e também
“fonte”. Calasso: “Aproximar-se de uma ninfa é ser apreendido
e possuído por alguma coisa, e imergir num elemento ao mesmo tempo
terno e instável, que pode ser emocionante mas também pode muito
bem ser fatal.” Mas qual era o poder das ninfas, o que eram essas
águas mágicas? Há um hino a Apolo que fala do noeron udaton,
“as águas mentais” que são o presente das ninfas ao deus das
artes. Uma vez conquistadas, as ninfas se ofereciam, e a sua oferenda
era o eídolon, a imagem, o simulacro. Ou seja, a matéria da
criação, a literatura. Cada vez que uma ninfa se oferece, evoca
este poder que precede a palavra, este manancial de vida que abastece
o artista, ou que ele imita, ou no qual se afoga.
Sócrates
se descrevia como um nymphóleptos, alguém “capturado pelas
ninfas”. O mais notório nymphóleptos da literatura moderna
é Humbert Humbert, o professor pedófilo da tragicomédia de
Vladimir Nabokov, Lolita. O desafortunado Humbert Humbert é
um “caçador encantado” que persegue a sua ninfeta até possuí-la
(num motel chamado A Caçadora Encantada), e dali em diante é
possuído por ela. Descrevendo sua emoção ao ver Lolita pela
primeira vez no quintal da sua casa, seminua, “numa poça de sol”,
Humbert Humbert diz que “uma onda de mar azul” cresceu sob o seu
coração. Parte da sua obsessão com a ninfeta é a memória que ela
lhe traz de um amor pré-pubescente na beira do Mediterrâneo, a
perdida Annabel, que deve o nome que Nabokov lhe deu a Annabel Lee do
poema de Edgar Allan Poe. Outro nymphóleptos, outro possuído.
Nabokov,
que se saiba, não era um pedófilo, portanto seu livro é um genial
respingo de “onda mnemônica”, ou um mergulho deliberado nas
“águas mentais” de alusões e significados que a onda nos traz,
lá de trás. Para Calasso, “a verdade esotérica” de Lolita está
numa única frase de Humbert Humbert: “A ciência da nympholepsia é
uma ciência precisa.” O que Nabokov não diz é que esta “ciência
precisa” é exatamente uma que ele exerceu durante toda a vida. Não
a perseguição de ninfetas, mas a perseguição da palavra exata e
do mistério que a ordena. Da literatura.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
Nenhum comentário:
Postar um comentário