...Tão
insolúvel que o Quincas Borba não pôde dar com ele, apesar de
estudá-lo longamente e com boa vontade. – Ora adeus! concluiu; nem
todos os problemas valem cinco minutos de atenção.
Quanto
à censura de ingratidão, Quincas Borba rejeitou-a inteiramente, não
como improvável, mas como absurda, por não obedecer às conclusões
de uma boa filosofia humanística.
– Não
me podes negar um fato, disse ele; é que o prazer do beneficiador é
sempre maior que o do beneficiado. Que é o benefício? é um ato que
faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o
efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, toma o
organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens
apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incômodo,
desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o
organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que
praticaram o ato. Não havendo nada que perdure, é natural que a
memória se esvaeça, porque ela não é uma planta aérea, precisa
de – mesmo chão. A esperança de outros favores, é certo,
conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este
fato, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu
caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra
fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor
passada e aconselha a precaução do remédio oportuno. Não digo
que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes,
persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição
mais ou menos intensa; mas são verdadeiras aberrações, sem nenhum
valor aos olhos de um filósofo.
– Mas,
repliquei eu, se nenhuma razão há para que perdure a memória do
obséquio no obsequiado, menos há de haver em relação ao
obsequiador. Quisera que me explicasse este ponto.
– Não
se explica o que é de natureza evidente, retorquiu o Quincas Borba;
mas eu direi alguma coisa mais. A persistência do benefício e seus
efeitos. Primeiramente, há o sentimento de uma boa ação, e
dedutivamente a consciência de que somos capazes de boas ações; em
segundo lugar, recebe-se uma convicção de superioridade sobre outra
criatura, superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das
coisas mais legitimamente agradáveis, segundo as melhores opiniões,
ao organismo humano. Erasmo, que no seu Elogio da Sandice escreveu
algumas coisas boas, chamou a atenção para a complacência com que
dois burros se coçam um ao outro. Estou longe de rejeitar essa
observação de Erasmo; mas direi o que ele não disse, a saber, que
se um dos burros coçar melhor o outro, esse há de ter nos olhos
algum indício especial de satisfação. Por que é que uma mulher
bonita olha muitas vezes para o espelho, senão porque se acha
bonita, e porque isso lhe dá certa superioridade sobre uma multidão
de outras mulheres menos bonitas ou absolutamente feias? A
consciência é a mesma coisa; remira-se a miúdo, quando se acha
bela. Nem o remorso é outra coisa mais do que o trejeito de uma
consciência que se vê hedionda. Não esqueças que, sendo tudo uma
simples irradiação de Humanitas, o benefício e seus efeitos são
fenômenos perfeitamente admiráveis.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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