sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Cabeças ou caudas

De balena vero sufficit, si rex habeat caput, et regina caudam. BRACTON, 1.3, c.3.

Este latim dos livros de Leis da Inglaterra, tomado em seu contexto, significa que, de todas as baleias capturadas por qualquer pessoa na costa daquele país, o Rei, como Grão-Arpoador Honorário, deve receber a cabeça, e a Rainha ser mui respeitosamente presenteada com a cauda. Uma divisão que, na baleia, equivale a cindir uma maçã ao meio; não há terceira parte que reste. Ora, como essa lei, a despeito das modificações, permanece em vigor ainda hoje na Inglaterra; e como oferece, em vários aspectos, estranhos desvios no que toca à lei geral do Peixe Preso e Peixe Solto, será tratada num capítulo à parte, com base no mesmo princípio cordial que faz com que as estradas de ferro inglesas custeiem um vagão separado, especialmente reservado para acomodar a realeza. Em primeiro lugar, como prova curiosa de que a referida lei ainda vigora, começarei por relatar um caso que ocorreu há menos de dois anos.
Parece que uns marujos honestos de Dover, ou de Sandwich, ou de algum dos Cinque Ports, após uma dura caçada, haviam logrado matar e rebocar até a praia uma baleia portentosa, que antes avistaram muito longe da costa. Ora, os Cinque Ports estão em parte e de algum modo sob a jurisdição de um tipo de policial ou bedel, chamado de Lorde Guardião. Recebendo suas atribuições diretamente da coroa, creio eu, todos os emolumentos reais, inerentes ao território dos Cinque Ports, mediante adjudicação, tornam-se seus. Para alguns escritores, esse encargo é uma sinecura. Mas não é assim. Pois o Lorde Guardião ocupa-se ativamente por vezes em embolsar as suas gratificações; que são dele sobretudo porque as embolsa.
Quando esses pobres marujos, queimados de sol, descalços e com as calças enroladas no alto das pernas enguiosas, muito esforçadamente arrastaram seu peixe gordo para um lugar alto e seco, sob as promessas de umas £ 150 de óleo e ossos preciosos; e imaginavam degustar raros chás com suas esposas, e beber de boa cerveja com seus amigos, contando com o que lhes renderiam suas respectivas partes; eis que aparece um cavalheiro erudito, muito Cristão e caridoso, com um livro de Blackstone sob o braço; e colocando-o sobre a cabeça da baleia, diz – “Tirai as mãos! Este peixe, meus senhores, é um Peixe Preso. Tomo posse dele em nome do Lorde Guardião”. A isso, os coitados dos marinheiros, em sua consternação respeitosa – tão verdadeiramente Inglesa –, sem saber o que dizer, começaram a coçar a cabeça vigorosamente; enquanto olhavam pesarosos para a baleia e para o estranho. Isso nada ajudou a contornar a contenda, ou de algum modo a abrandar o duro coração do ilustrado cavalheiro portador da cópia de Blackstone. Por fim, um deles, depois de coçar demoradamente as ideias, atreveu-se a falar.
Por favor, senhor, quem é o Lorde Guardião?”
O duque.”
Mas ele não fez nada para pegar esse peixe?”
É dele.”
Nós passamos por muita dificuldade, tivemos despesas, corremos perigo, e tudo isso em benefício do duque? Não receberemos nada por nosso esforço além do cansaço?”
É dele.”
O duque é tão pobre que se vê forçado a ganhar a vida desse modo desesperado?”
É dele.”
Pensei que poderia ajudar a minha mãe enferma com parte do meu quinhão dessa baleia.”
É dele.”
O duque não ficaria satisfeito com um quarto ou com a metade?”
É dele.”
Em suma, a baleia foi confiscada e vendida, e Sua Graça, o Duque de Wellington, recebeu o dinheiro. Pensando que, visto sob determinadas luzes, a um certo ponto, o caso até poderia ser considerado injusto, um honesto pastor da cidade escreveu uma nota respeitosa a Sua Graça, rogando-lhe que levasse em consideração o caso dos marujos desafortunados. A isso o Lorde Duque em substância respondeu (as duas cartas foram publicadas) que já o havia feito, e recebido o dinheiro, e que agradeceria ao venerável reverendo se no futuro, ele (o venerável reverendo) deixasse de se intrometer nos negócios alheios. Seria esse o velho agressivo, que fica pelas esquinas dos três reinos exigindo, de todas as formas, as esmolas dos mendigos?
De pronto se verá que nesse caso o alegado direito do Duque à baleia lhe era, antes, uma atribuição do Soberano. Devemos investigar, portanto, o princípio em que o Soberano se fundamenta para investir-se de tal direito. A lei já foi mostrada. Mas Plowden nos explica os motivos. Diz Plowden que a baleia assim capturada pertence ao Rei e à Rainha “em razão de sua excelência superior”. E os comentadores mais justos sempre consideram este um argumento irrefutável em tais disputas.
Mas por que deveria o Rei receber a cabeça e a Rainha a cauda? Um motivo para isso, advogados!
Em seu tratado sobre o “Ouro da Rainha”, ou miudezas da Rainha, um velho escritor da Bancada do Rei, um certo William Prynne, assim teue dito: “A cauda he da Rainha, pera que os trajos da Rainha tenhão osso de baleia”. Ora, isso foi escrito quando a barbatana escura e flexível da baleia da Groenlândia ou da baleia franca já era usada em grande escala nos corpetes das senhoras. Mas o dito osso não está na cauda; e sim na cabeça, o que configura triste engano para um tão sagaz advogado quanto o fora Prynne. Mas seria a Rainha uma sereia, para ser presenteada com uma cauda? Um significado alegórico pode ocultar-se aí.
Há dois peixes reais, assim tratados à pena pelos bacharéis da lei Inglesa – a baleia e o esturjão; ambos de propriedade real sob certas limitações, constituindo destarte o décimo ramo das receitas ordinárias da Coroa. Não tenho notícia de nenhum outro autor que tenha abordado o assunto; mas, por inferência, creio que o esturjão seja dividido como a baleia, com o Rei recebendo a cabeça muito compacta e elástica característica do peixe, fato que, levado simbolicamente em conta, pode estar jocosamente baseado em afinidades congênitas. E portanto parece haver uma razão em todas as coisas, inclusive na lei.
Herman Melville, in Moby Dick

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