quinta-feira, 15 de agosto de 2019

O poder e o charme

Costuma-se apontar as críticas que são feitas à situação nos jornais ou em pronunciamentos da oposição como provas de que existe liberdade de expressão. É uma pseudoliberdade, porque é consentida — e até bem pouco tempo nem isto era — e porque é inconsequente. Um filme como Todos os homens do presidente não é apenas sobre a liberdade de informação, é sobre a consequência que esta liberdade tem num país em que a imprensa age sobre o poder, em vez de apenas importuná-lo. Mais do que um filme sobre os desmandos do poder presidencial, Todos os homens... é também um filme sobre o poder do Washington Post em particular e da grande imprensa americana em geral.
Para um jornalista brasileiro, o mais incrível no filme é a facilidade com que os repórteres do Post pegam um telefone e perguntam para o figurão do governo o que querem saber. Não recebem evasivas, ninguém finge que caiu a ligação, são todos constrangidos a responder. Afinal, é o Washington Post que está na linha. É o fiscal, é uma das duas vigas mestras do establishment liberal, você simplesmente não mente para o Post . Ou então mente da maneira mais convincente que puder. Nixon e todo o poderio da Casa Branca contra o Post não foi exatamente uma luta desigual. A desvantagem estava com Nixon, como se viu.
Hoje sabemos que Nixon não teria caído, se não tivesse muita gente interessada em que isto acontecesse. Não foi uma conspiração, foi uma feliz coincidência de interesses. O filme não toca nisto. Não podia nem devia. A história foi escrita pelos dois repórteres envolvidos que nada sabiam — ou não queriam saber — sobre os outros interesses em jogo. O filme é sobre a sua aventura pessoal. Nenhum dos dois é político. A certa altura do filme, Woodward até se declara um republicano, o que, verdade ou não, combina com o seu tipo físico. O do ator e o do Woodward real. Bernstein é judeu, obviamente democrata, e o contraste que oferece, em tudo, à figura de Woodward é um dos atrativos incidentais do filme. Não se deve diminuir a importância dos dois atores para o sucesso de mais esta aventura do mocinho loiro e do seu amigo gozadão no cinema americano. Todas as histórias de detetive americanas são assim, uma investigação banal no começo que acaba revelando um complexo sistema de corrupção que só o herói solitário, pela persistência, consegue desmontar. E foi sorte também os dois se parecerem com Robert Redford e Dustin Hoffman. Até o Nixon, mais tarde, mais calmo, torceria por eles se visse o filme.
Dizem que as escolas de jornalismo dos Estados Unidos receberam inscrições em número recorde, depois que o caso Watergate estourou. O filme é, também, sobre o charme do jornalismo. O jornalista e o detetive não podem se queixar do prestígio que o cinema tem lhes dado através dos tempos. Com a diferença de que ninguém acredita na ficção do detetive mas o jornalismo continua a atrair cada vez mais pretendentes, embora sua realidade constantemente desminta o seu glamour. Não é uma profissão que gratifique nem com dinheiro nem com status nem com realização pessoal, salvo escassas exceções. E certamente não dá poder. A não ser que você vá trabalhar para o Post ou o Times. E mesmo lá você será usado.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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