sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O dinheiro nas mãos de alguns

Nando aquela manhã foi chamado cedo ao gabinete de d. Anselmo. Não era, felizmente, o Xingu.
Você acha, meu filho — disse d. Anselmo —, que o comunismo está realmente tomando conta de nossa terra?
Por que é que o senhor pergunta? Houve alguma coisa que trouxesse o problema à sua atenção?
Não é coisa, Nando, é aquele major do Exército que comunga todos os dias, que já tem me falado no assunto e que hoje ultrapassou todos os limites do razoável no seu zelo anticomunista. Francamente!
O tal do major Ibiratinga, não é? — disse Nando. — O que é que ele queria do senhor?
Responda você antes — disse d. Anselmo —: o comunismo vai ou não tomar conta da nossa terra?
Parece que o Partido está crescendo — disse Nando. — Pelo menos vegetativamente. O senhor sabe, d. Anselmo, é coisa animadora dizer à gente pobre que vai ser distribuído entre todos o dinheiro que hoje está nas mãos de alguns. Esta é a imagem popular do comunismo.
Mas não dava — disse d. Anselmo.
Como?
O dinheiro não dava.
Do ponto de vista de doutrinação isto é pormenor, d. Anselmo. A técnica deles é prometer aos humildes o Reino deste mundo. D. Anselmo começou a andar pela sala, nervoso.
Nossa “técnica”, como diz você, mas pelo avesso. Nós somos mais realistas. Nós prometemos o dinheiro do espírito, o Reino dos Céus, que dá para todos. Aliás, o major fala da Igreja em tom respeitoso mas duro. “É preciso que a Igreja não perca o seu caráter sagrado. Ela não deve dar explicações, bater boca com o comunismo. São Jorge não discutia com o dragão. Comunismo se extermina, como o exterminaram os espanhóis.” E o major ainda disse com um suspiro: “Mas os espanhóis tiveram a Inquisição! Daí a identificarem o demônio nas suas roupas atuais.” Quando eu me recusei terminantemente ao que propunha o major, ele ainda me disse: “Cuidado, d. Anselmo, o Partido Comunista está tentando se apresentar ao povo como a Igreja sem o outro mundo.” Você acha que os comunistas são perigosos assim, Nando?
Eu confesso, d. Anselmo, que não tenho dedicado maior atenção ao problema social no nosso estado e no Brasil em geral. Daí minha inapetência à discussão com os marxistas. Eles têm a mania, d. Anselmo, de explicar tudo pelo econômico, o que é parcial e muito tedioso. Refugam a luta verdadeira, compreendeu? A gente diz, com Newman, que a repetição dos pecados humanos é que retarda a construção, na Terra, de uma Jerusalém que reflita a outra, e eles viram para a gente e dizem: “Sabe qual foi a produção de açúcar este ano? Sabe quanto rendeu? E sabe que parte do total foi paga aos camponeses que produziram o açúcar?” É claro que se pode colher uma imagem de pecado — e pecado de usura, tão verberado pela Santa Madre Igreja — no fato de uma boa safra de açúcar não ter melhorado a situação do lavrador — eles só dizem camponês, d. Anselmo — que plantou e colheu açúcar. Mas fazem uma escamoteação com o pecado. Pecado é o sistema vigente. Compreendeu, d. Anselmo? O pecado é também comunizado . A alma do indivíduo acabou. Existem só dois pecados: o pecado ativo e glutão dos que se aproveitam do regime vigente e o pecado negativo e abjeto dos que não se rebelam contra tal coisa. Um crime passional na classe rica demonstra a decadência, a ociosidade da classe. Entre os pobres ele demonstra a exasperação a que leva a miséria. Culpa, culpa pessoal, intransferível não existe.
Senhor!
Nando se animou com a própria explanação.
Existiria mesmo aí, d. Anselmo, um fascinante debate a estabelecer com os comunistas, se eles debatessem alguma coisa fora do econômico. Com o ardor que sem dúvida os impele e com a cólera até certo ponto justa que nutrem contra nossos tempos, seria de se perguntar se não desejam, eventualmente, restituir ao pecado o seu esplendor.
Esplendor do pecado, padre Nando?
Na seguinte acepção: imaginemos como possível um mundo socialmente tão justo, tão perfeito que nada do fundamental falte a ninguém. O pecado não retombaria então com terrível fragor sobre o indivíduo? Não ganharia, na sua gratuidade, uma espécie de negra auréola?
Sim, sim — disse d. Anselmo. — Interessante, interessante. Mas abra bem os olhos e os ouvidos quando andar por aí. Preciso de argumentos contra o major Ibiratinga. Eu sei que esse cacete volta a me procurar. Jesus! Quando ele fala parece que os russos já andam pelos telhados do mosteiro.
Mas afinal, d. Anselmo, o que é que o major queria?
Uma coisa impossível — disse d. Anselmo.
Mas...
Domine a sua curiosidade, padre Nando. O major pediu o impossível e eu lhe disse que era impossível. Retirou-se respeitoso mas trombudo. Se ele voltar à carga, debateremos o assunto em miúdos.
Antonio Callado, in Quarup

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