sexta-feira, 23 de agosto de 2019

A cauda


Outros poetas trovaram as glórias do doce olhar do antílope, e a plumagem encantadora do pássaro que não pousa jamais; menos celestial, eu celebro uma cauda.
Calculando que a cauda do maior Cachalote começa no ponto em que o tronco se afunila até atingir quase a cintura de um homem, apenas a sua parte superior compreende uma área de pelo menos cinquenta pés quadrados. O bloco sólido e arredondado da raiz divide-se em dois lobos ou palmas grandes, firmes e achatados, que diminuem aos poucos até alcançar menos de uma polegada de espessura. No vértice da cauda, ou junção, os lobos sobrepõem-se um pouco, depois se afastam para os lados, como asas, deixando um espaço grande entre si. Em nenhuma criatura viva as linhas da beleza estão definidas com mais delicadeza do que nas bordas em meia-lua desses lobos. Na sua maior expansão, numa baleia adulta, a cauda excederá em muito os vinte pés de largura.
O membro inteiro parece um denso leito entretecido de tendões fundidos; mas ao cortá-lo descobre-se que é feito de três camadas distintas: a superior, a média e a inferior. As fibras da camada superior e da inferior são compridas e horizontais; as da camada média são muito curtas, ziguezagueando entre as camadas externas. Essa estrutura tríplice, mais do que qualquer outro fator, confere força à cauda. Para o estudioso de antigas muralhas romanas, a camada média fornece um paralelo curioso com a fileira fina de azulejos sempre alternada com as pedras, dessas maravilhosas relíquias dos antigos, e que, sem dúvida, contribuem muito para a grande resistência da construção.
Mas, como se essa imensa força localizada na cauda tendinosa não bastasse, o corpo todo do Leviatã está coberto por uma urdidura e contextura de fibras e filamentos musculares, que ao passar ao lado dos lombos, estendendo-se até os lobos, a eles se misturam insensivelmente, aumentando em muito a sua força; de tal modo que na cauda o incomensurável vigor da baleia inteira parece estar concentrado em um só ponto. Se a matéria pudesse ser aniquilada, esse seria o meio.
Nem isso – a sua força assombrosa – consegue comprometer a graciosa flexibilidade de seus movimentos; onde uma desenvoltura infantil serpeia com uma força titânica. Ao contrário, tais movimentos extraem dela a sua beleza mais estarrecedora. A verdadeira força jamais arruína a beleza ou a harmonia, mas muitas vezes a provê; e, em tudo que é imponentemente belo, o vigor se liga ao mágico. Eliminem-se os tendões nodosos que parecem sair do mármore da estátua de Hércules e o seu encanto se esvairá. Quando o devoto Eckermann levantou o lençol de linho que cobria o cadáver nu de Goethe, ficou impressionado com o tórax imponente do homem, que parecia um arco do triunfo romano. Quando Michelangelo pinta Deus Pai em forma humana, veja que força lhe atribui. E por mais que possam revelar do amor divino no Filho as delicadas, aneladas e hermafroditas pinturas italianas, nas quais a sua ideia foi incorporada com maior sucesso, tão destituídas de qualquer vigor, não sugerem força, a não ser na forma negativa e feminina da submissão e tolerância, que, como todos sabem, forma a base peculiar das virtudes práticas dos seus ensinamentos.
Tal é a elasticidade sutil do órgão de que trato, quer seja agitado por brincadeira, ou a sério, ou com raiva; em qualquer que seja o humor, as suas flexões são sempre marcadas por uma graça extraordinária. Nisso, não existe mão de fada capaz de superá-la.
Cinco movimentos importantes lhe são peculiares. Primeiro, quando usada como nadadeira de propulsão; segundo, quando usada como uma clava numa batalha; terceiro, para varrer; quarto, para bater a água; quinto, ao mergulhar.
Primeiro: sendo a sua posição horizontal, a cauda do Leviatã se comporta de modo diferente das caudas de todas as outras criaturas marinhas. Nunca se debate. No homem ou no peixe, debater-se é um sinal de inferioridade. Para a baleia, a sua cauda é o único meio de propulsão. Enrolada para a frente como um rolo de pergaminho embaixo do corpo, e então jogando-se depressa para trás, é isso o que dá aquele movimento rápido singular de salto ao monstro quando nada com fúria. As suas barbatanas laterais servem apenas para pilotar.
Segundo: é significativo que o Cachalote lute contra um outro Cachalote usando apenas a sua cabeça e mandíbula, e que, no entanto, na luta contra o homem use, principalmente e com desdém, mais a sua cauda. Ao atacar um bote, afasta a cauda depressa, em curva, e o golpe é desferido quando recua. Se for dado no ar desobstruído, e, em especial, se cair sobre o alvo, o golpe é, de fato, irresistível. Nenhuma costela humana ou bote consegue aguentar. A única salvação é evitá-lo; mas se vier de lado por águas que oferecem resistência, então, em parte, devido à leveza do bote e à elasticidade dos materiais, uma costela quebrada, ou uma ou duas tábuas arrebentadas, ou um corte que precise de sutura na lateral, em geral, é o resultado mais grave. Esses golpes laterais submersos são tão frequentes na pesca, que são considerados brincadeiras de crianças. Alguém tira a camisa e tapa-se o buraco.
Terceiro: não posso prová-lo, mas me parece que na baleia o sentido do tato se concentra na cauda; pois nesse aspecto existe nela uma delicadeza apenas igualada pela gentileza da tromba do elefante. Essa delicadeza é mais evidente na ação de varrer a água, quando, com uma candura donzelesca, a baleia move a sua cauda imensa, com uma certa suave morosidade, de lá para cá, sobre a superfície do mar; e, se sentir um fio de barba de um marinheiro, coitado do marinheiro, da barba e de tudo o mais. Que ternura há nesse toque preliminar! Se essa cauda tivesse algum poder preênsil, eu de pronto pensaria no elefante de Darmonodes, que ia ao mercado de flores e com saudações cordiais oferecia buquês às donzelas e lhes acariciava a cintura. Por mais de um motivo, é uma pena que a baleia não tenha a virtude preênsil na cauda; pois ouvi falar de um outro elefante que, ao se ferir durante a luta, virou a sua tromba e extraiu o dardo.
Quarto: seguindo-se furtivamente a baleia na segurança que imagina ter no meio dos oceanos solitários, pode-se vê-la sem a dignidade do seu vulto imenso, e como um gatinho ela brinca no oceano como este se fosse uma lareira. Mas mesmo nessa brincadeira percebe-se a sua força. Os lobos enormes da sua cauda erguem-se altos no ar; e, em seguida, batendo na superfície da água, a estrondosa concussão ressoa por milhas. Quase se pensaria tratar-se de um tiro de canhão disparado; e, ao reparar na leve espiral de vapor do espiráculo na outra extremidade, pensar-se-ia tratar-se da fumaça do orifício de uma arma.
Quinto: visto que, na posição comum de flutuação do Leviatã, a cauda fica bem abaixo do nível do seu dorso, quando ele está submerso não se pode vê-la; mas, quando está prestes a mergulhar nas profundezas, a cauda toda e pelo menos trinta pés do seu corpo inteiro ficam eretos no ar, e vibram por um momento até que, mergulhando, ficam invisíveis. Exceto o salto sublime – ainda por ser descrito algures –, esse mergulho da baleia é talvez a cena mais impressionante que se pode ver em toda a natureza viva. Vinda das profundezas infinitas, a cauda gigantesca parece tentar arrebatadamente alcançar algo no céu supremo. Assim, em sonhos vi o majestoso Satã avançar a sua enorme garra atormentada desde as chamas do Báltico do Inferno. Mas, ao contemplar tais cenas, tudo depende do seu estado de espírito: se no de Dante, ocorrer-te-ão os demônios; se no de Isaías, os anjos. De pé, junto ao topo do mastro do meu navio, durante um pôr-do-sol que deixou o céu e o mar vermelhos, vi, certa vez, um bando enorme de baleias no leste indo na direção do sol, e vibrando concertadas por um momento, com as caudas erguidas. Pareceu-me, na ocasião, que uma personificação tão grandiosa de adoração aos deuses nunca acontecera antes, nem mesmo na Pérsia, na terra dos adoradores do fogo. Tal como Ptolomeu Filopator testemunhou sobre o elefante africano, eu dou o meu testemunho sobre a baleia, declarando-a a mais devota das criaturas. Pois, segundo o rei Juba, os elefantes de guerra da Antiguidade amiúde faziam saudações pelas manhãs, com as suas trombas elevadas no mais profundo silêncio.
A comparação fortuita deste capítulo, entre a baleia e o elefante, no tocante a alguns aspectos da cauda de um e da tromba do outro, não deveria colocar esses dois órgãos opostos em paridade, e muito menos as criaturas às quais pertencem respectivamente. Pois, assim como o mais forte elefante não passa de um terrier para o Leviatã, da mesma forma, comparada com a cauda do Leviatã, sua tromba é o talo de um lírio. O golpe mais terrível da tromba de um elefante seria como a batidinha de um leque se comparada com o impacto e o choque desmedidos da cauda ponderosa do Cachalote, que em vários casos arremessaram botes inteiros com todos os remos e tripulação no ar, do mesmo modo que um malabarista indiano atira as suas bolas.
Quanto mais penso nessa cauda poderosa, mais lamento a minha pouca habilidade em descrevê-la. Há nela certos gestos que, embora pudessem dignificar a mão de um homem, permanecem totalmente inexplicáveis. Num bando grande, às vezes, esses gestos misteriosos são tão extraordinários que escutei caçadores dizendo que são parecidos com os sinais e símbolos da Maçonaria; que a baleia, de fato, por esses métodos conversa inteligentemente com o mundo. Tampouco faltam outros movimentos do corpo da baleia, estranhos e inexplicáveis para o seu agressor mais experiente. Por mais que a disseque, não consigo ir além da superfície da sua pele; não a conheço, e jamais a conhecerei. Mas se dessa baleia nada sei nem sobre a cauda, como compreender sua cabeça? Ainda mais, como compreender o seu rosto, se rosto ela não o tem? Tu me verás pelas costas, a minha cauda, ela parece dizer, porém a minha face não se verá. Mas não consigo ver direito o seu traseiro, e por mais que haja indícios de um rosto, digo e repito, ela não o tem.
Herman Melville, in Moby Dick

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