O
arcipreste era temente a Deus, e pouco se lhe dava do Diabo. Achava
que, no máximo, o Diabo é estampa de natureza folclórica. A fé em
Deus bastava ao arcipreste em todos os lances da vida, entre eles o
de atravessar a rua de subúrbio onde morava. Nenhuma carreta ousava
atropelá-lo, nem policial munido de bastão de gás paralisante e
cassetete eletrificado se lembraria de deter-lhe os passos.
Contudo,
a ciclista ruiva o derrubou de maneira tão sutil que ele só
percebeu o incidente ao se ver cercado de curiosos. Aparentemente,
não se machucara. Dor nenhuma. Tentou levantar-se, não pôde. A
mulher sumira. Tiveram de carregá-lo até o hospital mais próximo,
onde ficou acamado três meses. Iam dar-lhe alta quando recebeu a
visita de uma estranha senhora de olhos gateados e cabelos ruivos,
que lhe levou um ramo de flores e, sorrindo, lhe disse:
— Daqui
por diante o senhor pode continuar duvidando da existência dele, mas
já tem motivo para acreditar pelo menos na existência da mulher
dele.
O
arcipreste nunca mais foi o mesmo. Claudicava da perna esquerda, e
fazia coisas sem sentido.
Carlos
Drummond de Andrade, in Contos plausíveis
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