quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Experiência

O arcipreste era temente a Deus, e pouco se lhe dava do Diabo. Achava que, no máximo, o Diabo é estampa de natureza folclórica. A fé em Deus bastava ao arcipreste em todos os lances da vida, entre eles o de atravessar a rua de subúrbio onde morava. Nenhuma carreta ousava atropelá-lo, nem policial munido de bastão de gás paralisante e cassetete eletrificado se lembraria de deter-lhe os passos.
Contudo, a ciclista ruiva o derrubou de maneira tão sutil que ele só percebeu o incidente ao se ver cercado de curiosos. Aparentemente, não se machucara. Dor nenhuma. Tentou levantar-se, não pôde. A mulher sumira. Tiveram de carregá-lo até o hospital mais próximo, onde ficou acamado três meses. Iam dar-lhe alta quando recebeu a visita de uma estranha senhora de olhos gateados e cabelos ruivos, que lhe levou um ramo de flores e, sorrindo, lhe disse:
Daqui por diante o senhor pode continuar duvidando da existência dele, mas já tem motivo para acreditar pelo menos na existência da mulher dele.
O arcipreste nunca mais foi o mesmo. Claudicava da perna esquerda, e fazia coisas sem sentido.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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