quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Inconsistência do homem

Por que os homens teimam tanto em realizar alguma coisa? Não estariam eles muito melhor imóveis sob o céu, numa calma serena? O que se há, então, de fazer? Por que tantos esforços e ambições? O homem perdeu o sentido do silêncio. Ainda que a consciência seja o fruto de uma deficiência vital, ela não opera em cada indivíduo como fator de inadaptação; em alguns, ela engendra, ao contrário, um aumento das inclinações vitais. Não podendo mais viver no presente, o homem acumula um excedente que lhe pesa e escraviza; o sentimento do porvir é para ele uma calamidade. O processo segundo o qual a consciência dividiu os homens em duas grandes categorias é dos mais estranhos. Ele explica por que o homem é um ser tão pouco consistente, incapaz de encontrar seu centro de energia e equilíbrio. Aqueles cuja consciência levou à interiorização, ao suplício e à tragédia, assim como aqueles que ela lançou no imperialismo ilimitado do desejo de adquirir e possuir são, cada um à sua maneira, infelizes e desequilibrados. A consciência fez do animal um homem e do homem um demônio, mas ela ainda não transformou ninguém em Deus, ainda que o mundo orgulhe-se de ter despachado um numa cruz.
Evitem os indivíduos impermeáveis ao vício, pois sua presença insípida somente sabe chatear. Sobre o quê vocês conversariam senão sobre moral? Quem não ultrapassou a moral não pôde aprofundar nenhuma experiência, nem transfigurar os seus colapsos. A verdadeira existência começa onde a moral acaba, pois somente a partir deste ponto ela pode tentar tudo, e tudo arriscar, ainda que obstáculos oponham-se às suas conquistas reais. Precisa-se de infinitas transfigurações para atingir a região em que tudo é permitido, onde a alma pode lançar-se sem remorsos na vulgaridade, no sublime ou no grotesco, até alcançar uma tal complexidade que nenhuma direção ou forma de vida escapam ao seu alcance. A tirania que reina sobre as existências ordinárias deixa lugar à espontaneidade absoluta de uma existência única que traz em si a sua própria lei. Como a moral ainda valeria para um ser assim formado - o mais generoso possível, absurdo a ponto de lhe fazer renunciar ao mundo, oferecendo tudo o que possui? A generosidade é incompatível com a moral, esta racionalidade dos hábitos da consciência, esta mecanização da vida. Todo ato generoso é insensato, testemunha de uma renúncia impensável para o homem ordinário, que se envolve na moral para esconder sua vulgar nulidade. Tudo o que é realmente moral somente começa uma vez que a moral tenha sido evacuada. A mesquinharia de suas normas racionais não se mostra em nenhum lugar com mais evidência do que na condenação do vício - esta expressão do trágico carnal proveniente da presença do espírito na carne. Pois o vício implica sempre um surto da carne para além da sua fatalidade, uma tentativa de romper as barreiras que aprisionam os elans passionais. Um tédio orgânico leva então os nervos e a carne a um desespero do qual eles somente podem escapar tentando todas as formas possíveis da volúpia. No vício, o atrativo de outras formas, que não as normais, produz uma inquietude perturbadora: o espírito parece então transformar-se em sangue, para se mover como uma força imanente à carne. A exploração do possível não pode ser realizada, com efeito, sem o concurso do espírito nem a intervenção da consciência. O vício é uma forma de triunfo do individual; enquanto isto, como a carne poderia representar o individual sem um apoio exterior? Esta mistura de carne e de espírito, de consciência e de sangue, cria uma efervescência extremamente fecunda para o indivíduo refém dos charmes do vício. Nada repugna mais do que o vício aprendido, tomado de outrem e incorporado; também o elogio ao vício é completamente injustificado: além do mais, pode-se constatar a fecundidade para aqueles que sabem transfigurá-lo, desviar o próprio desvio. Para vivê-lo de maneira bruta e vulgar, explora-se apenas sua escandalosa materialidade, negligencia-se o frisson imaterial que faz sua excelência. Para atingir certas alturas, a vida íntima não pode dispensar-se das inquietudes do vício. E nenhum viciado há de ser condenado uma vez que, ao invés de considerar o vício como um pretexto, ele o transforma em finalidade.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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