No
fim de três meses, ia tudo à maravilha. O fluido, Sabina, os olhos
da moça, os desejos do pai, eram outros tantos impulsos que me
levavam ao matrimônio. A lembrança de Virgília aparecia de quando
em quando, à porta, e com ela um diabo negro, que me metia à cara
um espelho, no qual eu via ao longe Virgília desfeita em lágrimas;
mas outro diabo vinha, cor-de-rosa, com outro espelho, em que se
refletia a figura de Nhã-loló, tema, luminosa, angélica.
Não
falo dos anos. Não os sentia; acrescentarei até que os deitara
fora, certo domingo, em que fui à missa na capela do Livramento.
Como o Damasceno morava nos Cajueiros, eu acompanhava-os muitas vezes
à missa. O morro estava ainda nu de habitações, salvo o velho
palacete do alto, onde era a capela. Pois um domingo, ao descer com
Nhá-loló pelo braço, não sei que fenômeno se deu que fui
deixando aqui dois anos, ali quatro, logo adiante cinco, de maneira
que, quando cheguei abaixo, estava com vinte anos apenas, tão
lépidos como tinham sido.
Agora,
se querem saber em que circunstâncias se deu o fenômeno basta-lhes
ler este capítulo até o fim. Vínhamos da missa, ela, o pai e eu.
No meio do morro achamos um grupo de homens. O Damasceno, que vinha
ao pé de nós, percebeu o que era e adiantou-se alvoroçado; nós
fomos atrás dele. E vimos isto; homens de todas as idades, tamanhos
e cores, uns em mangas de camisa, outros de jaqueta, outros metidos
em sobrecasacas esfrangalhadas; atitudes diversas, uns de cócoras,
outros com as mãos apoiadas nos joelhos, estes sentados em pedras,
aqueles encostados ao muro, e todos com os olhos fixos no centro, e
as almas debruçadas das pupilas.
-
Que é? perguntou-me Nhã-loló.
Fiz-lhe
sinal que se calasse; abri sutilmente caminho, e todos me foram
cedendo espaço, sem que positivamente ninguém me visse. O centro
tinha-lhes atado os olhos. Era uma briga de galos. Vi os dois
contendores, dois galos de esporão agudo, olho de fogo e bico
afiado. Ambos agitavam as cristas em sangue; o peito de um e de outro
estava desplumado e rubro; invadia-os o cansaço. Mas lutavam ainda
assim, olhos fitos nos olhos, bico abaixo, bico acima, golpe deste,
golpe daquele, vibrantes e raivosos. O Damasceno não sabia mais
nada; o espetáculo eliminou para ele todo o universo. Em vão lhe
disse que era tempo de descer: ele não respondia, não ouvia,
concentrara-se no duelo. A briga de galos era uma de suas paixões.
Foi
nessa ocasião que Nhã-loló me puxou brandamente pelo braço,
dizendo que nos fôssemos embora. Aceitei o conselho e vim com ela
por ali abaixo. Já disse que o morro era então desabitado;
disse-lhes também que vínhamos da missa, e não lhes tendo dito que
chovia, era claro que fazia bom tempo, um sol delicioso. E forte. Tão
forte que abri logo o guarda-sol, segurei-o pelo centro do cabo, e
inclinei-o por modo que ajuntei uma página à filosofia do Quincas
Borba: Humanitas osculou Humanitas... Foi assim que os anos me vieram
caindo pelo morro abaixo.
Ao
sopé detivemo-nos alguns minutos, à espera de Damasceno; ele veio
dai a pouco rodeado dos apostadores, a comentar com eles a briga. Um
destes, tesoureiro das apostas, distribuía um velho maço de notas
de dez tostões, que os triunfadores recebiam duplamente alegres.
Quanto aos galos, vinham sobraçados pelo respectivo dono. Um deles
trazia a crista tão comida e ensanguentada, que vi logo nele o
vencido; mas era engano, - o vencido era o outro, que não trazia
crista nenhuma. Ambos tinham o bico aberto, respirando a custo,
esfalfados. Os apostadores, ao contrário, vinham alegres, sem
embargo das fortes comoções da luta; biografavam os contendores,
relembravam as proezas de ambos. Eu fui andando, vexado; Nhã-loló
vexadíssima.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
Nenhum comentário:
Postar um comentário