quinta-feira, 4 de julho de 2019

Quebrar armadilhas

Caros amigos: 
 
A leitura é o propósito que aqui nos junta. Nós queremos todos que se promova a leitura e se valorize o livro. E eu queria falar exatamente da palavra “ler”. Muitas vezes pensamos a nossa língua como algo que sempre existiu e que sempre existiu tal como a conhecemos hoje. Mas as palavras nascem, mudam de rosto, envelhecem e morrem. É importante saber onde nasceu cada uma delas, conhecer-lhe os parentes e saber do namoro que a fez nascer. Entender a origem e a história das palavras faz-nos ser mais donos de um idioma que é nosso e que não apenas dá voz ao pensamento como já é o próprio pensamento. Ao sermos donos das palavras somos mais donos da nossa existência.
A palavra “ler” vem do latim legere e queria dizer “escolher”. Era isso que faziam os antigos romanos quando, por exemplo, selecionavam entre os grãos de cereais. A raiz etimológica está bem patente no nosso termo “eleger”. Ora o drama é que hoje estamos deixando de escolher. Estamos deixando de ler no sentido da raiz da palavra. Cada vez mais somos escolhidos, cada vez mais somos objeto de apelos que nos convertem em números, em estatísticas de mercado.
A armadilha do idioma é já um primeiro tropeço no caminho para chegarmos aos outros e a nós mesmos. Pensamos na nossa língua mas não pensamos essa mesma língua. Do mesmo modo, deixamos de ler a nossa própria língua. E porque deixamos de ler somos surpreendidos por ausências e desfasamentos. Conceitos e categorias que nos parecem inocentes e universais não se apresentam universalmente do mesmo modo. Eu vivo num país, Moçambique, em que se costuram várias fronteiras interiores. São fronteiras de culturas, línguas, etnias, religiões. Esse convívio com a diversidade me obriga a revisitar palavras e conceitos que me parecem impensadamente globais. E vou aprendendo coisas curiosas. Por exemplo, vou sabendo de pais que são tios, de tias que são mães, de primos que são irmãos. Tudo isto porque as relações de parentesco não podem ser traduzidas com a facilidade de um assunto técnico. E vou sabendo de leões que, afinal, são pessoas, de crocodilos que são animais de alguém, de pessoas que, depois da morte, renascem em perdizes, em leopardos, em morros de muchém.

As armadilhas de dentro 
 
A nossa tentação é quase sempre maniqueísta. A visão simples que separa os “bons” dos “maus” é sempre a mais imediata. Quanto menos entendemos, mais julgamos.
A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por muito que nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar. Precisamos de passar um programa antivírus pelo nosso hardware mental.
Escolhi falar dessas ratoeiras interiores que nos convertem em nómadas deambulando entre ecos e sombras.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano

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