segunda-feira, 17 de junho de 2019

Interação

Você eu não sei, mas um dos meus terrores é o teatro interativo. A possibilidade de acabar no palco, ou de alguém do palco acabar no meu colo. Sei que a interação com o público é uma antiga tradição teatral. No teatro grego, não era raro alguém da platéia avisar ao Édipo que aquela era a sua mãe, forçando o ator a se fingir de surdo para não estragar a trama. No teatro elisabetano, a plateia assistia às apresentações de pé, comendo e bebendo e interferindo na peça com palpites ou com empadões bem mirados. Contam que alguns vilões de Shakespeare chegavam a interromper suas falas para responder aos insultos mais pesados do público, embora não haja registro de que algum tenha usado sua espada para silenciar alguém.
Em todos esses casos, a iniciativa era da plateia. Foi com o music-hall que a participação do público começou a ser incentivada do palco. Mas a não ser por uma eventual corista querendo tirá-lo para dançar ou alguma piada dirigida à sua careca, os espectadores da primeira fila não tinham muito o que temer.
Certamente nada parecido com o que viria com o teatro moderno, quando as primeiras filas se transformaram em áreas de exposição ao vexame — quando não à matéria orgânica. Quando, por assim dizer, o palco contra-atacou.
Ir ao teatro virou uma tortura e as primeiras filas um tormento. Você nunca sabe o que espirrará em você, ou se a mulher nua que sentará no seu colo não começará a morder sua orelha, ou não será um homem. Ou se você não será arrastado para o palco, despido e lambido por todo o elenco.
Dei para pedir lugar nas últimas filas do teatro, longe das ameaças. E se me avisam que eu terei a visão do palco obstruída, digo “melhor!”. Não ver o palco significa que não me verão do palco.
De certa forma, a experiência teatral de um espectador moderno repete toda a história do teatro, como o feto repete toda a história da espécie no ventre. Nada se parece mais com o teatro de antigamente do que o teatro infantil, onde também há tramas básicas, comédia ingênua, exageros trágicos e catarse. As crianças interferem na história como o público de antigamente, vaiando os vilões, incentivando os heróis, avisando aos berros que o lobo vai atacar e, não raro, subindo no palco para impedir o ataque. E por mais que façam, não são punidos. Continuam sendo “amiguinhos” e convidados a voltar por atores agradecidos, que muitas vezes precisam se controlar para não esgoelar o mais próximo, assim como eram toleradas as intromissões do público antigo. Quando fica adulto, o espectador aceita os abusos do teatro adulto como uma forma de contrição: ele merece qualquer vexame, de tanto que chateou quando era um espectador infantil. A agressividade do teatro moderno com o público, na verdade, é vingança.
Quem é tímido não tem nada a ver com tudo isto. Quando era pequeno, era dos poucos que ficava quieto no seu lugar do teatro, salvo por um ou outro sobressalto com o lobo. E no entanto, hoje, muitas vezes, é ele o escolhido para a interação, e para viver, sem merecer, o seu pior pesadelo. Não que ele não tente de tudo para evitar o vexame. Para não se arriscar, pede um lugar nas últimas filas. Especifica: quer um lugar ruim, de preferência sem visão do palco, para também não ser visto do palco. Mesmo assim, fica nervoso. Quando batem no seu ombro, ele grita, “Eu não! Eu não!”, até se dar conta de que é apenas alguém querendo entrar na sua fila e que a peça ainda nem começou. Quando começa a peça, ele fica preparado. E ao menor sinal de interação — nem que seja um ator que se aproxime muito do proscênio ou olhe para a plateia de um modo suspeito — ele não hesita. Foge para a rua. Correndo, pois há sempre a possibilidade de o elenco vir atrás dele.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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