segunda-feira, 17 de junho de 2019

Miguel Hernández

Não permaneci muito tempo no consulado de Buenos Aires. No começo de 1934 fui transferido com o mesmo cargo para Barcelona. D. Tulio Maqueira era meu chefe e cônsul-geral do Chile na Espanha. Foi certamente o mais zeloso funcionário do serviço consular chileno que conheci, um homem muito severo, com fama de esquivo mas que comigo foi extraordinariamente bondoso, compreensivo e cordial.
Descobriu rapidamente D. Tulio Maqueira que eu subtraia e multiplicava com grandes tropeços, e que não sabia dividir (nunca aprendi). Disse-me então:
- Pablo, você deve viver em Madri. A poesia está lá. Aqui em Barcelona estão essas multiplicações e divisões terríveis que não querem saber de você. Para isso eu sou suficiente.
Ao chegar a Madri, convertido da noite para o dia e por um passe de mágica em cônsul chileno na capital da Espanha, conheci todos os amigos de García Lorca e de Alberti. Eram muitos. Em poucos dias eu fazia parte do grupo dos poetas espanhóis. Naturalmente espanhóis e americanos somos diferentes, diferença essa que mantemos sempre com recíproco orgulho e desacerto.
Os espanhóis de minha geração eram mais fraternais, mais solidários e mais alegres que meus companheiros da América Latina. Comprovei ao mesmo tempo que nós éramos mais universais, mais familiarizados com outras línguas e outras culturas. Eram muito poucos entre eles os que falavam outro idioma além do castelhano. Quando Desnos e Crevel vieram a Madri, eu tive que servir-lhes de intérprete para que se comunicassem com os escritores espanhóis.
Um dos amigos de Federico e de Rafael era o jovem poeta Miguel Hernández. Eu o conheci quando chegava de alpercatas e calças de camponês, de bombazina, vindo de suas terras de Orihuela, onde tinha sido pastor de cabras. Publiquei seus versos em minha revista Caballo Verde e me entusiasmava o fulgor e o valor de sua abundante poesia.
Miguel era tão camponês que trazia uma aura de terra em torno de si. Tinha uma cara de torrão de terra ou de batata que se arranca das raízes e que conserva frescor subterrâneo. Vivia e escrevia em minha casa. Minha poesia americana, com seus horizontes e planuras, impressionou-o e o foi modificando.
Contava-me histórias telúricas de animais e pássaros. Era um escritor saído da natureza como uma pedra intacta, com virgindade selvática e incontrolável força vital. Contava o quanto era impressionante encostar o ouvido no ventre das cabras adormecidas. Assim se escutava o ruído do leite chegando ao ubre, o rumor secreto que ninguém pode escutar a não ser aquele poeta de cabras.
De outras vezes falava do canto dos rouxinóis. O Levante espanhol onde nasceu estava carregado de laranjeiras em flor e rouxinóis. Como em meu país não existe esse pássaro, esse cantor sublime, o louco do Miguel queria dar-me a mais viva expressão plástica de seu poderio. Encarapitava-se numa árvore da rua e, dos ramos mais altos, silvava ou trinava como seus amados pássaros natais.
Como não tinha do que viver, procurei um trabalho para ele. Era duro encontrar trabalho para um poeta na Espanha. Finalmente um visconde, alto funcionário do Ministério de Relações Exteriores, se interessou pelo caso e me respondeu que sim, que estava de acordo, que tinha lido os versos de Miguel, que o admirava e que este indicasse que posto desejava para dar-lhe a nomeação. Alvoroçado, disse ao poeta:
- Miguel Hernández, por fim tens um destino. O visconde te emprega. Serás um alto funcionário. É só dizer que trabalho queres executar para que assinem tua nomeação.
Miguel ficou pensativo. Sua cara de grandes rugas prematuras cobriu-se com um véu de meditação. Passaram-se horas e só à tarde respondeu. Com olhos brilhantes de quem encontrou a solução da sua vida, disse:
- Não podia o visconde me mandar tomar conta de um rebanho de cabras por aqui perto de Madri?
A lembrança de Miguel Hernández não pode fugir das raízes do meu coração. O canto dos rouxinóis levantinos, suas torres de som erguidas entre a escuridão e as flores brancas de laranjeira, eram para ele presença obsessiva e eram parte da massa de seu sangue, de sua poesia telúrica e silvestre na qual se juntavam todos os excessos da cor, do perfume e da voz do Levante espanhol, com a abundância e a fragrância de uma poderosa e masculina juventude.
Seu rosto era o rosto da Espanha, cortado pela luz, enrugado como uma sementeira, com algo rotundo de pão e de terra. Seus olhos febris, ardendo dentro dessa superfície queimada e endurecida ao vento, eram dois raios de força e de ternura.
Os próprios elementos da poesia eu os vi sair de suas palavras, porém alterados agora por uma nova magnitude, por um resplendor selvagem, pelo milagre do sangue velho transformado num filho. Em meus anos de poeta, e de poeta errante, posso afirmar que a vida não me permitiu contemplar um fenômeno igual de vocação e de elétrica sabedoria verbal.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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