Sempre
me impressionou esse estranho caso que acontece no silêncio da noite
e no interior das enciclopédias: a promiscuidade forçada das
personagens dos verbetes, as quais, sem querer, se encontram
alfabeticamente lado a lado... Não fosse a minha salutar preguiça,
eu escreveria um novo Dialogues des morts. Deixo aqui a ideia
a quem quiser aproveitá-la.
Que
diria, por exemplo, Napoleão a Nabucodonosor, que, se não me engano
muito, é ainda por cima o único lobisomem que aparece na Bíblia...
Em todo caso, o orgulho do Imperador ficaria por demais ferido com a
total ignorância de seu vizinho de página a respeito de suas
andanças através da História. Ainda mais danado ficaria ele se
pudesse ver os filmes em que é apresentado como um baixinho
irrequieto, nervosinho, de gestos súbitos, um garnisé petulante.
Por ocultos motivos, parece que é moda denegrir Napoleão entre os
cineastas franceses. Isto apesar de os burgueses de França terem
ficado seduzidos, até hoje, com as fitinhas da Legião de Honra, que
ele, maliciosamente, criou exatamente para os civis — o que ainda
agora o deve divertir muitíssimo.
Mas
por que diabo foi ele vender a Louisiana aos Estados Unidos? Não
fora isto, poderia transportar, depois de Waterloo, a sede do Governo
para o Novo Mundo — como fez Dom João VI ao vir para o Brasil. Foi
a mesma burrada (desculpem, não me ocorre no momento outra
expressão), foi o mesmo, digo agora, que fez a Rússia ao vender o
território do Alasca aos norte-americanos. Com que raiva não hão
de pensar nisto os soviéticos, que, com um pé na América, aí sim,
poderiam, literalmente falando, abarcar o mundo com as pernas. Mas,
depois do que aconteceu, é tolice imaginar o que poderia não ter
acontecido. Deixemos pois os guerreiros em imerecida paz e vamos
falar daqueles cujo reino não é deste mundo.
Contudo,
receio que Napoleão e Nabucodonosor não se estranhariam tanto como
pessoas da mesma Era e da mesma Fé. Como Santa Teresa de Jesus, por
exemplo, e Santa Teresinha do Menino Jesus, que se defrontam na mesma
página. Deus me perdoe, mas creio até que o velho Teresão não
daria importância àquela meiga menina, com suas chuvas de rosas...
“Deixá-la falar! santinha de arrabalde...”
Mário
Quintana, in A vaca e o hipogrifo
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