Leio
– tento ler, no meu jeito torto e precário de leitor solitário –
o Livro da alma, do filósofo persa Ibn Sina, conhecido no
Ocidente como Avicena. O livro (editora Globo, tradução do árabe
por Miguel Attié Filho) arrasta atrás de si uma longa tradição
filosófica. Ibn Sina entrou para a história do pensamento como o
homem que, na virada do século X para o século XI, lutou para
reconciliar as duas grandes tradições do passado filosófico: a
filosofia severa de Aristóteles e as ideias elevadas de Platão. É
nesse vão estreito entre as duas grandes muralhas filosóficas que
eu agora, leitor comum, me espremo e luto para ler. Mais ainda: luto
para escrever.
Perfilando-se
entre as duas tradições, e imitando os alquimistas, Sina concebeu
uma versão abstrata da pedra filosofal, em que a filosofia,
devorando as duas grandes árvores do passado, se endurece em
princípios rígidos (de pedra) e reluz. Ela se torna, assim, uma
síntese de tudo o que os homens, antes dela, chegaram a pensar. Sina
foi um perseguidor do Um – a unidade salvadora, que amansa e
disfarça as contradições. Ofereceu-se como uma espécie de grande
sintetizador, na esperança de que na síntese (fusão dos
contrários) chegasse, enfim, ao verdadeiro. Foi, não posso deixar
de pensar, um homem que usou a filosofia para perseguir a ideia de
Deus.
Ibn
Sina escreve para pensar o funcionamento da alma e apontar o lugar
que ela ocupa em nossa vida. Em outras palavras: escreve para
classificar e adestrar o imaterial, que se caracteriza justamente por
sua aversão a qualquer ordem. Seu esforço ainda hoje repercute: o
mundo contemporâneo se origina justamente do congelamento e da
consagração dessas duas tradições. De um lado, o desejo de
perfurar o real, de obturar seus vazios, de fatiá-lo com a lâmina
do pensamento, para emprestar-lhe uma classificação e uma ordem –
Aristóteles. De outro, o desejo de elevá-lo, de repuxar suas
fronteiras para o alto, de inundá-lo com a grande claridade das
ideias – Platão.
Entre
esses dois caminhos – que até hoje se desenrolam –, Ibn Sina
oferece-se como o construtor de uma terceira via – impossível –
de equilíbrio e inclusão. Ela se destina à cura da dor espiritual,
tese que desenvolve em outro livro, batizado “A cura”. Aceitar o
indizível, mas, ainda assim, insistir em nomeá-lo. Admitir a
existência de uma grande escuridão, mas, mesmo assim, lutar para
iluminá-la. Acolher o grande paradoxo que define o humano, mas, com
devoção e teimosia, insistir em ordená-lo. Não foi pouco o que
Sina tentou fazer.
Chego
à literatura – que é sempre meu destino. Lendo Ibn Sina,
acompanhando seu esforço desesperado para costurar o rombo que
carregamos no peito, ocorre-me que, no mundo contemporâneo, este
lugar terceiro é ocupado não por uma filosofia (uma síntese, em
que Sina tanto acreditou), mas pela ficção (que é dispersão e
fragmento). Nem a claridade cega (Aristóteles e suas classificações,
de que derivam a ciência e a técnica) nem a elevação suntuosa
(Platão e a alvorada das religiões monoteístas). Mas então o quê?
Imitando
o pai que, em “A terceira margem do rio”, o relato genial de
Rosa, pega sua canoa e nela se instala para isolar-se no coração de
um rio (fluidez e mutação), a literatura oferece-se como o lugar
por excelência do humano e da imperfeição. Instala-se como uma
fronteira de precariedade e desamparo, sem nenhuma esperança de
“solucionar” os grandes conflitos (ciente de que solução não
há), resignada a contemplar (amar) o real naquilo que ele é. Não
por desistência ou preguiça, mas porque sabe que nesta terceira
margem o humano resiste.
Enquanto
a literatura, desistindo do saber poderoso e da elevação, escolhe o
centro do rio (água, imagem imperfeita e vacilante), Ibn Sina, em
movimento oposto, deseja anular o rio ondulante, em eterno e
desconhecido movimento – o rio ameaçador da vida contra o qual
filosofia, religião e ciência se erguem. Lutando para sintetizar
duas teorias da alma, Ibn Sina – arrisco-me a usar a palavra –
comporta-se como um desalmado, que recusa e exclui a grande sujeira
do humano. Sina, o teimoso, não desiste de buscar o que não há.
Agora
eu – que vejo sempre a ficção espalhada por toda parte – leio
(mais com meus defeitos do que com minha pequena lucidez) o esforço
de Sina. E nele vejo, ao avesso, como um rio subterrâneo que escorre
em silêncio, a imagem invertida da ficção. Nem perfuração nem
elevação, mas acolhimento amoroso do que é. No lugar da pedra bem
cortada dos sistemas, a beleza abstrata da respiração. Assim
respiramos: primeiro puxamos o ar que nos mantém vivos, mas logo
depois o expulsamos porque, retido no peito, ele pode matar. Ibn Sina
não: tenta conservar para sempre o peito estufado com o ar
filosófico. Crê que é preciso encher ainda mais esse pobre peito
que sufoca. Quer Tudo. Aprisiona o diverso no saco do Um.
A
ficção e a filosofia de Ibn Sina ocupam a mesma terceira margem
que, no entanto, para cada uma delas é uma margem diferente. Ali
onde a literatura acolhe e conduz o líquido benfazejo da dúvida,
Ibn Sina – como um alfaiate metódico – costura a colcha do Um.
Luta para cerzir com o fio do pensamento o rombo que define o humano.
Sem esse rombo, porém, nada somos. Se Sina vencesse, em vez de
alargar nossas almas, nós a perderíamos. Ali onde Ibn Sina retém e
prende, a literatura descortina e rasga. Ficamos assim, de mãos
vazias, mas cheias de desejo.
Entre
os ideais elevados de Platão (perfeição) e as ideias bem afiadas
de Aristóteles (técnica), entre um Platão que se assemelha a um
profeta e um Aristóteles que joga de açougueiro, Ibn Sina se posta
como uma sentinela, que zela pela porta de saída. Filosofou em um
momento da história em que filosofia e ciência se misturavam.
Escreveu na esperança de chegar a um grande oceano de ordem, no qual
o rio do pensamento pudesse, enfim, desaguar. Pensou tê-lo
vislumbrado. Enquanto isso, no meio do rio e desde os gregos, a
ficção persiste. Não como solução ou salvação, mas como um
reduto precário do humano.
José
Castello, in Sábados inquietos
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