sábado, 25 de maio de 2019

Ibn Sina, o teimoso

Leio – tento ler, no meu jeito torto e precário de leitor solitário – o Livro da alma, do filósofo persa Ibn Sina, conhecido no Ocidente como Avicena. O livro (editora Globo, tradução do árabe por Miguel Attié Filho) arrasta atrás de si uma longa tradição filosófica. Ibn Sina entrou para a história do pensamento como o homem que, na virada do século X para o século XI, lutou para reconciliar as duas grandes tradições do passado filosófico: a filosofia severa de Aristóteles e as ideias elevadas de Platão. É nesse vão estreito entre as duas grandes muralhas filosóficas que eu agora, leitor comum, me espremo e luto para ler. Mais ainda: luto para escrever.
Perfilando-se entre as duas tradições, e imitando os alquimistas, Sina concebeu uma versão abstrata da pedra filosofal, em que a filosofia, devorando as duas grandes árvores do passado, se endurece em princípios rígidos (de pedra) e reluz. Ela se torna, assim, uma síntese de tudo o que os homens, antes dela, chegaram a pensar. Sina foi um perseguidor do Um – a unidade salvadora, que amansa e disfarça as contradições. Ofereceu-se como uma espécie de grande sintetizador, na esperança de que na síntese (fusão dos contrários) chegasse, enfim, ao verdadeiro. Foi, não posso deixar de pensar, um homem que usou a filosofia para perseguir a ideia de Deus.
Ibn Sina escreve para pensar o funcionamento da alma e apontar o lugar que ela ocupa em nossa vida. Em outras palavras: escreve para classificar e adestrar o imaterial, que se caracteriza justamente por sua aversão a qualquer ordem. Seu esforço ainda hoje repercute: o mundo contemporâneo se origina justamente do congelamento e da consagração dessas duas tradições. De um lado, o desejo de perfurar o real, de obturar seus vazios, de fatiá-lo com a lâmina do pensamento, para emprestar-lhe uma classificação e uma ordem – Aristóteles. De outro, o desejo de elevá-lo, de repuxar suas fronteiras para o alto, de inundá-lo com a grande claridade das ideias – Platão.
Entre esses dois caminhos – que até hoje se desenrolam –, Ibn Sina oferece-se como o construtor de uma terceira via – impossível – de equilíbrio e inclusão. Ela se destina à cura da dor espiritual, tese que desenvolve em outro livro, batizado “A cura”. Aceitar o indizível, mas, ainda assim, insistir em nomeá-lo. Admitir a existência de uma grande escuridão, mas, mesmo assim, lutar para iluminá-la. Acolher o grande paradoxo que define o humano, mas, com devoção e teimosia, insistir em ordená-lo. Não foi pouco o que Sina tentou fazer.
Chego à literatura – que é sempre meu destino. Lendo Ibn Sina, acompanhando seu esforço desesperado para costurar o rombo que carregamos no peito, ocorre-me que, no mundo contemporâneo, este lugar terceiro é ocupado não por uma filosofia (uma síntese, em que Sina tanto acreditou), mas pela ficção (que é dispersão e fragmento). Nem a claridade cega (Aristóteles e suas classificações, de que derivam a ciência e a técnica) nem a elevação suntuosa (Platão e a alvorada das religiões monoteístas). Mas então o quê?
Imitando o pai que, em “A terceira margem do rio”, o relato genial de Rosa, pega sua canoa e nela se instala para isolar-se no coração de um rio (fluidez e mutação), a literatura oferece-se como o lugar por excelência do humano e da imperfeição. Instala-se como uma fronteira de precariedade e desamparo, sem nenhuma esperança de “solucionar” os grandes conflitos (ciente de que solução não há), resignada a contemplar (amar) o real naquilo que ele é. Não por desistência ou preguiça, mas porque sabe que nesta terceira margem o humano resiste.
Enquanto a literatura, desistindo do saber poderoso e da elevação, escolhe o centro do rio (água, imagem imperfeita e vacilante), Ibn Sina, em movimento oposto, deseja anular o rio ondulante, em eterno e desconhecido movimento – o rio ameaçador da vida contra o qual filosofia, religião e ciência se erguem. Lutando para sintetizar duas teorias da alma, Ibn Sina – arrisco-me a usar a palavra – comporta-se como um desalmado, que recusa e exclui a grande sujeira do humano. Sina, o teimoso, não desiste de buscar o que não há.
Agora eu – que vejo sempre a ficção espalhada por toda parte – leio (mais com meus defeitos do que com minha pequena lucidez) o esforço de Sina. E nele vejo, ao avesso, como um rio subterrâneo que escorre em silêncio, a imagem invertida da ficção. Nem perfuração nem elevação, mas acolhimento amoroso do que é. No lugar da pedra bem cortada dos sistemas, a beleza abstrata da respiração. Assim respiramos: primeiro puxamos o ar que nos mantém vivos, mas logo depois o expulsamos porque, retido no peito, ele pode matar. Ibn Sina não: tenta conservar para sempre o peito estufado com o ar filosófico. Crê que é preciso encher ainda mais esse pobre peito que sufoca. Quer Tudo. Aprisiona o diverso no saco do Um.
A ficção e a filosofia de Ibn Sina ocupam a mesma terceira margem que, no entanto, para cada uma delas é uma margem diferente. Ali onde a literatura acolhe e conduz o líquido benfazejo da dúvida, Ibn Sina – como um alfaiate metódico – costura a colcha do Um. Luta para cerzir com o fio do pensamento o rombo que define o humano. Sem esse rombo, porém, nada somos. Se Sina vencesse, em vez de alargar nossas almas, nós a perderíamos. Ali onde Ibn Sina retém e prende, a literatura descortina e rasga. Ficamos assim, de mãos vazias, mas cheias de desejo.
Entre os ideais elevados de Platão (perfeição) e as ideias bem afiadas de Aristóteles (técnica), entre um Platão que se assemelha a um profeta e um Aristóteles que joga de açougueiro, Ibn Sina se posta como uma sentinela, que zela pela porta de saída. Filosofou em um momento da história em que filosofia e ciência se misturavam. Escreveu na esperança de chegar a um grande oceano de ordem, no qual o rio do pensamento pudesse, enfim, desaguar. Pensou tê-lo vislumbrado. Enquanto isso, no meio do rio e desde os gregos, a ficção persiste. Não como solução ou salvação, mas como um reduto precário do humano.
José Castello, in Sábados inquietos

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