quinta-feira, 18 de abril de 2019

Um livro inédito II

Referindo-me há dias a um livro curioso que li em 1939, de autor desconhecido, rigorosamente inédito, recebi de Gilberto Freyre este pedido:
Conte-me isso num artigo para a Província. É o que desejamos, descobrir valores, apresentar gente nova.
No primeiro momento achei o programa, com franqueza, supérfluo. Tem surgido espontaneamente nestes últimos tempos tanta gente nova de valor discutível que me pareceu arriscado incentivar novas estreias, estimular fracasso e desilusões. Pessimismo desarrazoado, evidentemente. As obras ruins que inundaram o mercado no decênio agora findo não prejudicam, ou prejudicam pouco, as boas. Aliás não se trata dessa contribuição voluntária, dos cavalheiros tipo Orante que pagam para ser literatos: invadem certas sociedades de letras mundanas, financiam edições, derramam-se nas dedicatórias, mendigam uns elogios pingados no rodapé, cavam pistolões para meter colaborações gratuitas nos suplementos dominicais. A revista pretende é desentocar os sujeitos que por aí vivem, no interior, no subúrbio, na capital de segunda classe, estudando, examinando, anotando, e um dia se resolvem a jogar no papel fatos e ideias, arranjam coisas que o nosso público, encharcado de traduções cinematográficas, recebe com desconfiança. Em geral esses homens não têm nenhum desejo de celebrizar-se: leem, combinam observações próprias com observações alheias, porque o natural deles é isto, ler, combinar, mas não fazem questão de conservar-se anônimos. São indiferentes à pequena fama que obtemos, escondem-se tímidos, receosos talvez de, caindo na livraria e no jornal, perturbar o trabalho paciente e desinteressado a que se dedicam. O urso que mencionei a Gilberto Freyre deve ocultar-se por orgulho. Mandou, há dois anos, quinhentas folhas datilografadas ao concurso de contos da livraria José Olympio, foi até o fim do julgamento em companhia de Luís Jardim, perdeu por um voto. E amoitou-se, naturalmente indignado; maldizendo o júri, pelo menos parte dele, até certo ponto com razão. Nada mais precário que essas escolhas por sufrágio. Não existe um critério, há critérios, e isto ocasiona desordem. Um jurado embirra com um concorrente porque tem opiniões políticas diferentes das dele, outro porque a adjetivação lhe desagrada. Impossível estabelecer-se harmonia. Mas o autor vencido tem um recurso: levanta os ombros, considera os juízes uns idiotas, continua a escrever e publica a obra derrotada, para demonstrar que houve injustiça. O contista referido tomou o pinhão na unha e conservou-se incógnito, não obstante várias pessoas se terem esforçado por conhecê-lo, até indivíduos que votaram contra ele. Usou o pseudônimo de Viator, tem jeito de médico, mora, ou morou, na roça. É o que sabemos. Ignoramos dele a idade, a cor, a índole. Contudo nesse calhamaço de quinhentas folhas, lido por meia dúzia de pessoas e logo recolhido avaramente, há coisas ótimas. Se quisermos ser honestos, devemos dizer que há outras muito ruins, e isto nos desconcerta: os amores piegas dum engenheiro com uma professorinha de grupo escolar, a morte inverossímil de um médico transformado, por desgostos excessivos, em trabalhador de enxada, algumas páginas de mau gosto que chegam à declamação, à propaganda, ao arrazoado. Numa delas quase nos avisa de que aquilo não é anúncio de soro antiofídico. Mordeduras de consciência, precisão de desfazer passagens que só se desfariam se o autor tivesse tido a coragem de rasgar papel escrito. Junto a isso certa preciosidade de linguagem e certa monotonia, cadência de embalo da rede. Num período longo sucedem-se dezoito ou dezenove versos de seis sílabas, rigorosamente medidos. Estes reparos são uma impertinência, é claro. Ninguém tem o direito de fazer restrições a um trabalho que não veio a lume. O meu intuito, porém, é, exibindo defeitos, pôr em evidência as qualidades boas do livro, que sobe muito ou desce demais, nunca sendo medíocre. Foram provavelmente esses altos e baixos que o prejudicaram. Como é enorme, ainda ficaria de tamanho considerável se o expurgassem da professora, do engenheiro, do médico, da advocacia mais ou menos clara. Teríamos uma excelente coleção de contos — a história humana de Lalino, as viagens complicadas de dois criminosos que se procuram e evitam no sertão, o admirável fim do compadre Joãozinho Bembem, uma conversa de bois, caso sério, dos mais sérios levados a efeito por estas latitudes. O diálogo vivo, a descrição exata, a narrativa segura. Conhecimento perfeito do meio e dos assuntos tratados. Estamos longe do sertão falso, apresentado por cidadãos que dele não tinham nenhuma notícia. Nada de transplantação, de adaptação forçada. Não temos aqui um drama chegado pelo correio e, traduzido convenientemente, posto em cena com atores escolhidos na população dos nossos cafundós. Tudo real, nacional e bárbaro. Além de conhecer bem os homens e a terra, esse Viator é um animalista notável. Certo os seus animais são criaturas humanas, como os de numerosos escritores que se ocupam de bichos falantes e pensantes; a cobra que aparece de pele nova é parente da Kaa de Kipling . 7 Isto não lhes tira a verossimilhança. Essas figuras convencionais — os bois, um burro que atravessa um rio cheio e salva o cavaleiro bêbado — estão admiravelmente fixadas e comovem. Vem-me de novo a ideia de que estes ligeiros comentários são, até nos elogios, inconvenientes e indiscretos. Não há, porém, outro meio de revelar a existência dum escritor macambúzio, enroscado, descrente do juízo alheio, talvez do seu próprio juízo. Lembrando-se do aborrecimento que teve em 1939, Viator algumas vezes examinará com certeza as boas páginas que fez, julgar-se-á vítima dum logro, prometerá não reincidir; outras vezes notará desgostoso algumas falhas existentes, exagerá-las-á, dirá pessimista que elas se estendem, racham toda a obra — e considerar-se-á inepto, não terá nenhum prazer em voltar à companhia de Lalino e do compadre Joãozinho Bembem. Enquanto se gasta nessa alternativa dolorosa, criaturas hábeis, livres de dúvida, furam caminho, avançam, oferecem-se descaradamente, pedem, rebaixam-se em demasia e aí formam o pulo: quando menos esperamos, surgem lá em cima, decidindo, uns figurões. De malabaristas semelhantes, insensíveis e sem escrúpulos, nada esperamos. Mas Viator é uma espécie de tatu. Não seria mau que a revista publicasse algumas linhas em tipo graúdo, com este apelo: “Gratifica-se a pessoa que trouxer a esta redação o conto ‘Conversa de bois’, visto por cinco ou seis literatos e desaparecido misteriosamente há dois anos. O autor, homem esquivo, de hábitos ambulatórios, andou pelo interior do Brasil, estudando pacientemente brutos, cristãos e plantas. Faltam outras indicações.”
Graciliano Ramos, in Garranchos

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