sexta-feira, 22 de março de 2019

A noite da revolta

Cary Grant e Ginger Rogers

Minha velha, está na hora de tomar o comprimido para dormir.
Mas eu não quero dormir. Tem um filme na televisão que eu queria ver.
Acho melhor você não ficar acordada. Pode não gostar do filme e depois passa a noite em claro.
Não. Você tome o seu comprimido e eu prefiro ficar acordada.
Mas eu não sei tomar o meu comprimido sem você tomar o seu. Acho que não vou dormir se tomar o comprimido sozinho.
Experimente, Artur. Só esta noite.
Estamos tão acostumados que, se os dois comprimidos não forem tomados juntos, acho que um não faz efeito.
Ah, Artur, você é a cruz da minha vida. Será possível que eu não possa nem ao menos rever um filme de Cary Grant?
Estou te estranhando, Lindaura. Nunca pensei que você tivesse paixão por esse Cary Grant.
Muito bonito, cena de ciúmes a essa altura da vida. Trinta e oito anos de fidelidade, e você me vem com uma coisa dessas. Você se esquece que, quando a Ginger Rogers passou o Carnaval no Rio, o seu assanhamento não teve limites. Não sossegou enquanto não pediu a ela um autógrafo e Deus sabe o que mais.
Nunca tive nada com a Ginger Rogers. Juro!
Não teve porque ela não deu bola. Quer saber de uma coisa, Artur? Você diz que o seu comprimido sozinho não faz efeito. Então, tome também o meu. Tome os dois, tome cinco ou dez, e me deixe em paz curtindo o meu Cary Grant!
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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