sexta-feira, 22 de março de 2019

Elegia para todas as avós

Uma das avós mais terríveis do mundo é também uma das mais populares e continua viva no conto A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Nenhuma avó é mais vingativa e punitiva do que a personagem desse relato de Gabriel García Márquez.
Os leitores das memórias do escritor colombiano sabem que sua avó verdadeira não inspirou la abuela diabólica da ficção. Ao contrário: d. Tranquilina contava histórias e anedotas mirabolantes para o neto. Muito tempo depois, García Márquez transformou essas histórias em literatura.
Avós são seres inesquecíveis. Raramente são frágeis ou indiferentes, quase sempre são poderosas, ativas, afetuosas além da conta e dispostas a dar tudo pelos netos.
Tua avó prepara esse prato melhor do que eu.” “Só a tua avó tem paciência contigo”, diz a mãe ao filho pequeno.
E quando essa mãe ralha com a criança, esta responde: “Minha avó não me trata assim”.
Claro, avós geralmente não impõem limites, sua tolerância tende ao infinito, seus netos já nascem anjos, que são seres perfeitos. Às vezes, o mimo e a tolerância excessivos de uma avó transtornam os pais do anjo, mas cada família resolve isso a seu modo.
Um dos legados de uma avó-matriarca é a memória do clã. Outro dia, uma índia uanano, do alto rio Negro, me disse que sua avó quase centenária reunia os netos para contar histórias de sua tribo.
Ela nos ensinou os mitos de origem”, disse a neta. “Mitos da origem dos uananos, esquecidos pelos mais jovens. Agora quero pôr tudo o que ela me contou num livro.”
As palavras de uma avó terminam nas páginas de um livro, pensei.
Até mesmo uma criança que não conheceu sua avó, constrói aos poucos uma imagem dessa mulher ausente, evocada com saudade nas conversas domingueiras e admirada nas fotografias dos álbuns de família. Ela acaba por se tornar um ente mitológico, um ser sublime que habita a imaginação da infância. Tenho a impressão de que, mesmo ausentes, nossas avós e bisavós existem.
Por exemplo: Salma, minha bisavó paterna, que eu não conheci. Meu pai contava que ela fazia uma armadilha para os passarinhos que frequentavam o pomar da casa da infância, em Beirute; de manhãzinha, os netos viam as tamareiras cheias de pássaros, os pés presos ao galho pela resina de uma fruta.
Salma deixava a turma de crianças soltar as aves, brincar com elas, engaiolá-las, fazer o diabo com os bichinhos. No almoço, os netos comiam outros pássaros, temperados com alho e limão; as crianças sequer suspeitavam da relação entre o cativeiro noturno das aves e o cardápio do almoço.
Salma chorou quando meu pai, ainda jovem, migrou para o Brasil, onde viveu mais de meio século. Ele era órfão desde os quatro anos de idade, de modo que Salma reunia os atributos de avó e mãe numa só mulher. Ele nunca mais a viu. Mas dela ficaram fotos antigas e histórias que lampejam na minha memória.
Avós também têm alguma influência na economia de um país. Quando vivas, ninguém troca a comida que elas preparam por um almoço num restaurante. Duas amigas, donas de ótimos restaurantes (um italiano e outro árabe), me afirmaram que suas grandes concorrentes são as avós dos clientes. Com frequência, essas amigas ouvem frases como: “Minha avó fazia melhor essa lasanha… Só minha avó sabia preparar kafta e tabule”.
Os netos, já marmanjos, afirmam isso na bucha, sem o menor constrangimento”, dizem minhas amigas.
Bem-aventurados os que ainda têm duas avós. Eu, que só tive uma, sinto saudades dela nessa época natalina, quando a mesa era para lá de farta; e fartos também eram o carinho e a devoção que ela dedicava aos netos.
Há pouco tempo, um amigo que perdeu sua mãe me contou como o filho dele reagiu à notícia da morte da avó:
Ela está sonhando para sempre”, murmurou entristecido o neto de cinco anos.
Que o leitor perdoe o tom nostálgico desta crônica. Afinal, a nostalgia é também humana.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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