Uma
das avós mais terríveis do mundo é também uma das mais populares
e continua viva no conto A incrível e triste história da Cândida
Erêndira e sua avó desalmada. Nenhuma avó é mais vingativa e
punitiva do que a personagem desse relato de Gabriel García Márquez.
Os
leitores das memórias do escritor colombiano sabem que sua avó
verdadeira não inspirou la abuela diabólica da ficção. Ao
contrário: d. Tranquilina contava histórias e anedotas mirabolantes
para o neto. Muito tempo depois, García Márquez transformou essas
histórias em literatura.
Avós
são seres inesquecíveis. Raramente são frágeis ou indiferentes,
quase sempre são poderosas, ativas, afetuosas além da conta e
dispostas a dar tudo pelos netos.
“Tua
avó prepara esse prato melhor do que eu.” “Só a tua avó tem
paciência contigo”, diz a mãe ao filho pequeno.
E
quando essa mãe ralha com a criança, esta responde: “Minha avó
não me trata assim”.
Claro,
avós geralmente não impõem limites, sua tolerância tende ao
infinito, seus netos já nascem anjos, que são seres perfeitos. Às
vezes, o mimo e a tolerância excessivos de uma avó transtornam os
pais do anjo, mas cada família resolve isso a seu modo.
Um
dos legados de uma avó-matriarca é a memória do clã. Outro dia,
uma índia uanano, do alto rio Negro, me disse que sua avó quase
centenária reunia os netos para contar histórias de sua tribo.
“Ela
nos ensinou os mitos de origem”, disse a neta. “Mitos da origem
dos uananos, esquecidos pelos mais jovens. Agora quero pôr tudo o
que ela me contou num livro.”
As
palavras de uma avó terminam nas páginas de um livro, pensei.
Até
mesmo uma criança que não conheceu sua avó, constrói aos poucos
uma imagem dessa mulher ausente, evocada com saudade nas conversas
domingueiras e admirada nas fotografias dos álbuns de família. Ela
acaba por se tornar um ente mitológico, um ser sublime que habita a
imaginação da infância. Tenho a impressão de que, mesmo ausentes,
nossas avós e bisavós existem.
Por
exemplo: Salma, minha bisavó paterna, que eu não conheci. Meu pai
contava que ela fazia uma armadilha para os passarinhos que
frequentavam o pomar da casa da infância, em Beirute; de manhãzinha,
os netos viam as tamareiras cheias de pássaros, os pés presos ao
galho pela resina de uma fruta.
Salma
deixava a turma de crianças soltar as aves, brincar com elas,
engaiolá-las, fazer o diabo com os bichinhos. No almoço, os netos
comiam outros pássaros, temperados com alho e limão; as crianças
sequer suspeitavam da relação entre o cativeiro noturno das aves e
o cardápio do almoço.
Salma
chorou quando meu pai, ainda jovem, migrou para o Brasil, onde viveu
mais de meio século. Ele era órfão desde os quatro anos de idade,
de modo que Salma reunia os atributos de avó e mãe numa só mulher.
Ele nunca mais a viu. Mas dela ficaram fotos antigas e histórias que
lampejam na minha memória.
Avós
também têm alguma influência na economia de um país. Quando
vivas, ninguém troca a comida que elas preparam por um almoço num
restaurante. Duas amigas, donas de ótimos restaurantes (um italiano
e outro árabe), me afirmaram que suas grandes concorrentes são as
avós dos clientes. Com frequência, essas amigas ouvem frases como:
“Minha avó fazia melhor essa lasanha… Só minha avó sabia
preparar kafta e tabule”.
“Os
netos, já marmanjos, afirmam isso na bucha, sem o menor
constrangimento”, dizem minhas amigas.
Bem-aventurados
os que ainda têm duas avós. Eu, que só tive uma, sinto saudades
dela nessa época natalina, quando a mesa era para lá de farta; e
fartos também eram o carinho e a devoção que ela dedicava aos
netos.
Há
pouco tempo, um amigo que perdeu sua mãe me contou como o filho dele
reagiu à notícia da morte da avó:
“Ela
está sonhando para sempre”, murmurou entristecido o neto de cinco
anos.
Que
o leitor perdoe o tom nostálgico desta crônica. Afinal, a nostalgia
é também humana.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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