quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Um cão, outro cão

Vovô triste procura seu cachorro pointer, Toy, desaparecido. Boa recompensa para quem devolvê-lo ou souber onde ele se encontra. Tel. 287…”
Alô! É o Vovô Triste?
Como?
Não é o Vovô Triste quem está falando? Aquele que perdeu um cachorro de estimação?
Ah, sim. Sou eu mesmo. Estou tão triste que nem me lembrei do nome que pus no jornal. O senhor achou o meu Toy?
Antes de mais nada, meu caro senhor, quero cumprimentá-lo com respeito. Estou falando com um homem de sensibilidade, um homem de coração grande, que sofre com a perda de uma companhia animal. Eu divido os homens entre os que amam a convivência dos irracionais, e aqueles que…
Obrigado. Mas o senhor achou o meu Toy?
Um momento. Não posso deixar de me inclinar diante das pessoas sensíveis, realmente identificadas com o mundo natural. Isso é tão raro hoje em dia. — Não é tanto assim, o senhor exagera. Todo mundo que tem um cão é porque gosta dele, e gostando, sente falta quando ele some.
É o que o senhor pensa. Muita gente dá graças a Deus quando se vê livre do animal doméstico, que não quer ficar sozinho em casa e impede que o dono saia de viagem ou mesmo para jantar fora. Conheço casos…
Está bem. Agora me dê notícias do Toy.
Pois não. Ele é pointer, não é?
Exatamente.
Inglês ou alemão?
Inglês, com muita honra.
Por que o senhor diz “com muita honra”? Se fosse alemão, a honra era menor, ou nenhuma?
Absolutamente, cavalheiro. Prezo tanto a Inglaterra como a Alemanha, mas o meu cão é inglês, eu gosto do meu cão, então eu digo com muita honra que ele é inglês. Há algum mal nisso?
Entendi. O seu Toy é preto ou branco?
Branco, manchado.
De preto, de laranja, de que cor?
De preto. O senhor achou, o senhor viu em algum lugar o meu Toy? Diga logo, estou tão ansioso!
Tenha calma, Vovô Triste. Estou lhe perguntando porque tem tanto cachorro por aí, de tantas variedades da mesma raça, que só a gente vendo um retrato bem nítido do animal é que pode identificá-lo, né?
Eu conheço o meu Toy a léguas de distância. Conheço pela ligeireza, pelo aprumo, pela individualidade, mais do que pela cor ou pelo tamanho. Conheço de cor e salteado, sou capaz de distingui-lo entre mil pointers iguaizinhos uns aos outros.
Mas eu não, é lógico. Outra coisa. O senhor prometeu uma boa recompensa.
Exato.
De quanto?
Bem, eu acho que dois mil cruzeiros para quem me trouxer o Toy, ou mil para quem indicar o seu paradeiro, é uma boa recompensa, o senhor não acha?
Quer mesmo que eu diga? Acho pouco.
Pouco por quê? Sabe qual o preço máximo de um pointer inglês? Dois mil e quinhentos.
Sim, é o preço de mercado, para cães de pedigree, mas tem uma coisa mais importante do que pedigree: o amor a um animal de estimação. Seu amor está cotado em dois mil?
Ah, o senhor não deve falar assim, o senhor me tortura. Quisera eu dispor de cinco mil, de dez mil, de cinquenta mil cruzeiros, para resgatar o meu querido Toy. Mas sou um simples inativo do Ministério da Justiça, à espera de classificação no cargo inicial da carreira, o senhor entende?
Sendo assim… não se fala mais nisso. Desculpe. Não quero aumentar sua aflição. Mas já que entramos nessas intimidades, quero corresponder à sua confiança e dizer-lhe uma coisa.
Qual?
Não convém o senhor se amofinar por causa do Toy.
Como? Quer dizer que ele morreu?!
Deus me livre. Eu nunca seria portador de uma notícia dessas.
E então?
Então, é que numa cidade imensa como esta, com milhares de cães perdidos, a probabilidade de encontrar o seu bichinho é muito limitada. Enquanto espera, o senhor sofre, o senhor se angustia, o senhor fica mais triste ainda. Por que, em vez disso, não parte para outra?
Deixar de procurar o Toy? Seria uma infâmia!
Quem falou em infâmia? Quero apenas o seu bem, a ordem de suas coronárias, de sua cuca. O senhor evitará muitas decepções, conservando a memória do Toy encarnada em outro animalzinho adorável. Olhe, eu tenho aqui um filhote de miniatura pinscher que é uma graça, um amor de coisinha leve. Posso lhe dar por dois mil cruzeiros, exatamente a importância de que o senhor dispõe e que provavelmente não terá aplicação ao insistir em procurar o Toy… Assim o senhor, de Vovô Triste, na fossa, passará a Vovô Alegre, digo mais… a Vovô Feliz…
Bandido! Miserável!
Carlos Drummond de Andrade, in Boca de lua

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