quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

A letra D


Numa escavação feita em Kalibangan, em 1922, pelo pesquisador inglês John Marshall, foi encontrada, em meio a estátuas de Vishnu e Shiva, homens de três cabeças e altares sacrificiais, a pedra shalagrama-shila, de que o arqueólogo ouvira falar e que se tornara sua obsessão ao longo de mais de vinte anos de buscas e trabalhos extenuantes. Conhecia a crença vigente no vale do rio Gandaki, que dizia que uma pessoa, apenas por tocar uma pedra como aquela, se libertaria dos pecados não somente de sua própria existência, como também das existências de milhões de nascimentos anteriores e posteriores ao seu, pois a pedra representa o Bhagavan em pessoa, a soma total de todos os universos. E, embora não partilhasse das crenças hindus que pregavam essas supostas verdades, também sabia que não poderia tocá-la frivolamente, porque não queria profanar um credo de tamanha beleza e fervor. Além disso, em algum lugar de sua memória e de sua alma obsessiva e cansada, afora o respeito que devotava aos hindus, existia uma sombra de fé, sem contar as experiências que havia testemunhado entre os hindus e mesmo entre os ocidentais, de pessoas que desmaiavam ou com quem ocorriam acidentes estranhos assim que ousavam dessacralizar um objeto adorado. Afinal, a adoração por aqueles objetos, deuses, manuscritos e estátuas em nada se assemelhava aos cultos ocidentais. Não era um culto a relíquias que aludia simbolicamente a uma totalidade a quem se devia submissão. Os objetos não eram somente a parte de um todo. Eram a própria totalidade e não pertenciam, como posse, a nenhuma divindade. Não eram as mãos que os haviam tocado ou utilizado que os sacralizavam; era o seu pertencimento à natureza, à terra e ao cosmo, o que em tudo os tornava diferentes dos outros objetos-relicários. John também sabia que não poderia vender a pedra, porque atribuir um valor a um objeto como aquele era, segundo os hindus, condenar-se ao inferno eterno, pois nisso também os hindus acreditam, embora o inferno hindu seja em tudo diferente do dantesco, cercado de pequenos diabos armados de tridentes e ocupado por fogueiras. John também não tinha por que pensar em lucrar alguma coisa com a pedra; vivia confortavelmente e tinha se desiludido das glórias adquiridas com a venda de objetos sagrados para museus ingleses. Afinal, havia mais objetos hindus no British Museum do que poderia comportar a Índia inteira, se nela pudessem ser dispostos os objetos encontrados até então. A pedra tinha formato ovalado e numa de suas faces havia um rosto pintado que sorria, enquanto na outra face da pedra o mesmo rosto tinha os lábios voltados para baixo, em sinal de submissão. Nas laterais da pedra havia faixas pretas e amarelas e, no canto inferior da face em que se via o rosto que sorria, podia ser lida a seguinte inscrição assinada por Purana: “Nenhuma shila do local das shalagramas nunca poderá ser não auspiciosa mesmo que rachada, riscada, partida ou até mesmo quebrada”. Aquela shila em particular continha uma pequena rachadura, mas, como dizia a própria inscrição, não havia com que se preocupar. John Marshall lembrava-se de já ter lido aquela mesma inscrição em outro lugar; era uma frase aparentemente sem importância, mas algo nela o incomodava. Deixou a shila preservada no mesmo local onde a encontrara, pois ainda não decidira o que fazer com ela, e não tinha coragem de tocá-la. Retornou ao hotel. À noite, num de seus sonhos em que misturava línguas, o hindu, o egípcio e o nepalês, além, é claro, do inglês e do dialeto irlandês de seus pais, sonhou com algumas palavras, que anotou imediatamente: “salagram namito’ham martyair”. Caminhou durante todo o dia seguinte pelas escavações do vale de Mohenjo Daro, com aquelas palavras em sua cabeça. Onde já as tinha lido? Ao lado da shalagrama que havia deixado guardada no dia anterior, Marshall percebeu, jogado ao acaso, um dado védico, um resto de marfim quebrado, em cujas faces ainda se podiam ver alguns traços de letras sagradas. Lembrou-se finalmente da origem daquelas palavras, que vira gravadas na shila, com as quais sonhara e que se recordava de ter visto inscritas num dos dados que possuía em casa, amontoados ao acaso, como cabe fazer com os dados, numa das vitrines que havia mandado fabricar especialmente para guardar seus objetos. John cultivava uma predileção estranha e descabida por aqueles pequenos objetos sagrados e profanos, porque, mesmo representando uma atividade proibida e vã, o jogo, ainda mantinham alguma relação incerta e única com as divindades. Marshall tinha aprendido que o acaso contido nos dados muitas vezes se encontrava mais próximo dos deuses do que os próprios Vedas ou até os seres que dedicavam sua vida ao sacrifício, abstendo-se dos prazeres mundanos, como o jogo, por exemplo. Sabia que o acaso, sua insubmissão ao destino, era também uma forma de lei não científica, mas atomística, cósmica, que regia as criaturas de maneira harmoniosa e poética, pela atração que as moléculas sabiam exercer umas sobre as outras. Marshall amava o acaso e via nos dados, especialmente os hindus, com suas inscrições religiosas, uma espécie de síntese de seu trabalho, que misturava fé e razão. Eram objetos tão bem construídos, tão matematicamente servis à sorte e carregados simultaneamente das histórias sacra e profana. Pensou em sua estante de dados e lembrou-se do dado específico onde havia essa inscrição. Era um dado feito de osso, de um branco amarelado, inteiramente rachado, com uma das faces totalmente apagada. No lugar de números, ou pontos, como costumava encontrar nos outros dados, havia letras e pequenas inscrições embaixo de cada uma delas. Eram o am, o jha, o ba, o ha e o tha, todos escritos no alfabeto devanágari. John percebeu que o lado em que faltava uma letra era justamente aquele em que se encontrava aquela inscrição com a qual sonhara. Olhou para a shila, pensou na inscrição que habitava tanto a pedra intocável quanto o dado todo gasto que possuía em seu armário e decidiu que, assim que chegasse em casa, inscreveria ele mesmo no dado a letra da. Percebeu que a inscrição referente às rachaduras, que dizia que mesmo a shila rachada não traria má sorte, entrava em estranha comunhão com o destino simples e mundano do dado e que a letra da, do hindu, representava perfeitamente a sensação que, instantaneamente, o retirava de sua melancolia e o encaminhava de volta a um sentido primordial de seu trabalho. Era a letra inicial de davaiana, cuja pobre tradução para o inglês era “encantamento”, “maravilhamento” — a totalidade do sonho, do acaso e do divino, a tradução da vizinhança entre a shila e o dado. Lembrou-se também de que na sua língua, o inglês, ainda não havia uma palavra para designar aquele objeto que lhe provocara aquela estranha potência de vida, tampouco uma letra para designá-lo. Em homenagem a davaiana, à letra da, do hindu, e ao alfabeto devanágari, Marshall inventou então a letra D, que imediatamente foi adotada para nomear aquele objeto como dado, assim como para designar o sentimento da divina dualidade, que governava a vida de John e governa a todos nós até os dias de hoje e para sempre.
Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto

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