O
Ogre rilhava os dentes agudos e lambia os beiços grossos, com esse
exagerado ar de ferocidade que os monstros gostam de aparentar, por
esporte.
Diante
dele, sobre a mesa posta, o Inocentinho balava, imbele. Chamava-se
Malaquias – tão pequenino e reconchudo, pelado, a barriguinha pra
baixo, na tocante posição de certos retratos da primeira infância…
O
Ogre atou o guardanapo ao pescoço. Já ia o miserável devorar o
Inocentinho, quando Nossa Senhora interferiu com um milagre.
Malaquias criou asas e saiu voando, voando, pelo ar atônito… saiu
voando janela em fora…
Dada,
porém, a urgência da operação, as asinhas brotaram-lhe
apressadamente na bunda, em vez de ser um pouco mais acima, atrás
dos ombros. Pois quem nasceu para mártir, nem mesmo a Mãe de Deus
lhe vale!
Que
o digam as nuvens, esses lerdos e desmesurados cágados das alturas,
quando, pela noite morta, o Inocentinho passa por entre elas, voando
em esquadro, o pobre, de cabeça pra baixo.
E
o homem que, no dia do ordenado, está jogando os sapatos dos filhos,
o vestido da mulher e a conta do vendeiro, esse ouve, no entrechocar
das fichas, o desatado pranto do Anjo Malaquias!
E
a mundana que pinta o seu rosto de ídolo... E o empregadinho em
falta que sente as palavras de emergência fugirem-lhe como cabelos
de afogado... E o orador que pára em meio de uma frase… E o tenor
que dá, de súbito, uma nota em falso... Todos escutam,
no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!
no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!
E
quantas vezes um de nós, ao levantar o copo ao lábio, interrompe o
gesto e empalidece... – O Anjo! O Anjo Malaquias! – ... E então,
pra disfarçar, a gente faz literatura... e diz aos amigos que foi
apenas uma folha morta que se desprendeu... ou que um pneu estourou,
longe... na estrela Aldebaran…
Mário
Quintana, in Coleção Melhores Poemas
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