Outro
dia uma vizinha mineira me disse que ia à Catedral da Sé para rezar
pelos carteiros. Pensei que ela ia rezar pelo aumento do salário dos
carteiros, que estavam em greve. Mas a razão da reza era mais grave.
“Meu
pai foi carteiro em Belo Horizonte”, ela disse. “Daqui a cinco
anos os carteiros vão perder o emprego para a internet.”
“Ainda
recebo postais”, eu disse. “Recebi um de Cruzeiro do Sul, outro
de Zurique, um de Fez, dois de Belém. E vou receber um envelope…”
“Seus
postais e envelopes estão com os dias contados”, interrompeu minha
vizinha. “Daqui a cinco anos você só vai receber extrato
bancário. Ou nem isso. Vão entupir seu computador com postais
eletrônicos. Por isso vou rezar por esses mensageiros andarilhos em
extinção.”
Mensageiros
andarilhos em extinção…
Agora,
ao ver um carteiro na calçada, a frase da minha vizinha piedosa me
vem à mente. Não sei se os postais, as cartas e os carteiros vão
sumir. Sei que a amizade está ficando virtual demais. Temo que os
amigos desapareçam, já nem ouço a voz de alguns deles, nem ao
telefone. Porque ver e abraçar um amigo tornou-se uma coisa
complicada, quase uma façanha numa cidade cujos moradores só se
deslocam com rapidez por baixo da terra. E há poucas estações de
metrô numa metrópole do tamanho de São Paulo. Uma mensagem
eletrônica é um contato muito mais rápido, quase instantâneo. Mas
será mais humano?
E
o diabo é que os bloqueadores dos provedores são driblados o tempo
todo. Não há bloqueador infalível, de modo que as mensagens
indesejáveis proliferam que nem atos secretos.
Por
que eu me interessaria em comprar um apartamento em Cingapura ou em
ter um emprego em Dubai, Bangcoc ou na Costa do Marfim? E esses
malucos que oferecem um elixir que garante uma potência sexual até
os 96 anos de idade? Sem contar as fotografias de gatas assanhadas,
que mais parecem quadros de um museu pornô-kitsch eletrônico.
Essa
invasão é o lado bárbaro da internet: a propaganda desenfreada,
amalucada e nociva (para não dizer ofensiva), que vai do comércio
sexual à oferta de trabalho semiescravo. Em 1867, depois de visitar
a Exposição Universal de Paris, Gustave Flaubert escreveu: “o ser
humano não foi criado para devorar o infinito”.
Mas
devo à internet o contato com uma amiga espanhola, que não via
desde o século passado. Ela me enviou uma mensagem em catalão e
recordou a brincadeira que eu fazia sobre sua língua materna: muitas
palavras catalãs hesitavam em terminar ou não terminavam
totalmente, palavras que parecem desprezar o som final, nasalizado,
tão forte em outras línguas românicas.
Reatamos
pela internet uma amizade interrompida há quase trinta anos, e na
longa carta virtual lembrou passagens da nossa vida no bairro de
Gracia, onde dividíamos um apartamento em frente ao pequeno teatro
Lliure, que encenava as melhores peças de Barcelona.
“Ou
você aprende um pouco de catalão ou vai ficar mudo em Gracia”,
ela dizia, referindo-se aos moradores do bairro, quase todos catalães
da gema, que se recusavam a falar espanhol, uma recusa obstinada,
corajosa, mesmo durante a época nada memorável do ditador Franco.
“Nossa
língua faz parte da nossa identidade, é a essência da nossa
cultura”, ela escreveu, evocando também a visita ao apartamento de
Gracia de amigos brasileiros que moravam em Paris e Londres.
“Que
memória, Carmen! Reinaldo Moraes vai bem e publicou há pouco tempo
um épico erótico, um romance divertidíssimo que só os desalmados
não dão gargalhadas durante a leitura.” Carmen lembrava-se de
Reinaldo, Denio, Daisy, Maria Emília, Betania, Eliete e outros
brasileiros que passaram pela rua Montseny. Perguntou por uma moça
calada, uma poetisa e tradutora que morava na Inglaterra.
“Nem
todas as notícias são boas, Carmen. Essa moça talentosa se
suicidou em 1983.”
E
por fim ela revelou que havia encontrado um caderno branco, manchado
pelo tempo: meu diário catalão, onde registrara minhas andanças
por vários lugares da Espanha, poemas callejeros, trabalhos
de freelancer e tantas coisas que havia esquecido.
Já
dava esse diário por perdido, que é o destino das palavras de
muitos diários: pura perdição. Agora esse achado da minha amiga
voará de Barcelona até São Paulo num envelope que um mensageiro
andarilho me entregará antes de perder seu emprego para a internet.
Às vezes um mero acaso pode extraviar envelopes, mas espero que
dessa vez o correio não seja el correo del azar.
Milton
Hatoum, in Um
solitário à espreita
Nenhum comentário:
Postar um comentário