sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Uma carta virtual da Catalunha

Outro dia uma vizinha mineira me disse que ia à Catedral da Sé para rezar pelos carteiros. Pensei que ela ia rezar pelo aumento do salário dos carteiros, que estavam em greve. Mas a razão da reza era mais grave.
Meu pai foi carteiro em Belo Horizonte”, ela disse. “Daqui a cinco anos os carteiros vão perder o emprego para a internet.”
Ainda recebo postais”, eu disse. “Recebi um de Cruzeiro do Sul, outro de Zurique, um de Fez, dois de Belém. E vou receber um envelope…”
Seus postais e envelopes estão com os dias contados”, interrompeu minha vizinha. “Daqui a cinco anos você só vai receber extrato bancário. Ou nem isso. Vão entupir seu computador com postais eletrônicos. Por isso vou rezar por esses mensageiros andarilhos em extinção.”
Mensageiros andarilhos em extinção…
Agora, ao ver um carteiro na calçada, a frase da minha vizinha piedosa me vem à mente. Não sei se os postais, as cartas e os carteiros vão sumir. Sei que a amizade está ficando virtual demais. Temo que os amigos desapareçam, já nem ouço a voz de alguns deles, nem ao telefone. Porque ver e abraçar um amigo tornou-se uma coisa complicada, quase uma façanha numa cidade cujos moradores só se deslocam com rapidez por baixo da terra. E há poucas estações de metrô numa metrópole do tamanho de São Paulo. Uma mensagem eletrônica é um contato muito mais rápido, quase instantâneo. Mas será mais humano?
E o diabo é que os bloqueadores dos provedores são driblados o tempo todo. Não há bloqueador infalível, de modo que as mensagens indesejáveis proliferam que nem atos secretos.
Por que eu me interessaria em comprar um apartamento em Cingapura ou em ter um emprego em Dubai, Bangcoc ou na Costa do Marfim? E esses malucos que oferecem um elixir que garante uma potência sexual até os 96 anos de idade? Sem contar as fotografias de gatas assanhadas, que mais parecem quadros de um museu pornô-kitsch eletrônico.
Essa invasão é o lado bárbaro da internet: a propaganda desenfreada, amalucada e nociva (para não dizer ofensiva), que vai do comércio sexual à oferta de trabalho semiescravo. Em 1867, depois de visitar a Exposição Universal de Paris, Gustave Flaubert escreveu: “o ser humano não foi criado para devorar o infinito”.
Mas devo à internet o contato com uma amiga espanhola, que não via desde o século passado. Ela me enviou uma mensagem em catalão e recordou a brincadeira que eu fazia sobre sua língua materna: muitas palavras catalãs hesitavam em terminar ou não terminavam totalmente, palavras que parecem desprezar o som final, nasalizado, tão forte em outras línguas românicas.
Reatamos pela internet uma amizade interrompida há quase trinta anos, e na longa carta virtual lembrou passagens da nossa vida no bairro de Gracia, onde dividíamos um apartamento em frente ao pequeno teatro Lliure, que encenava as melhores peças de Barcelona.
Ou você aprende um pouco de catalão ou vai ficar mudo em Gracia”, ela dizia, referindo-se aos moradores do bairro, quase todos catalães da gema, que se recusavam a falar espanhol, uma recusa obstinada, corajosa, mesmo durante a época nada memorável do ditador Franco.
Nossa língua faz parte da nossa identidade, é a essência da nossa cultura”, ela escreveu, evocando também a visita ao apartamento de Gracia de amigos brasileiros que moravam em Paris e Londres.
Que memória, Carmen! Reinaldo Moraes vai bem e publicou há pouco tempo um épico erótico, um romance divertidíssimo que só os desalmados não dão gargalhadas durante a leitura.” Carmen lembrava-se de Reinaldo, Denio, Daisy, Maria Emília, Betania, Eliete e outros brasileiros que passaram pela rua Montseny. Perguntou por uma moça calada, uma poetisa e tradutora que morava na Inglaterra.
Nem todas as notícias são boas, Carmen. Essa moça talentosa se suicidou em 1983.”
E por fim ela revelou que havia encontrado um caderno branco, manchado pelo tempo: meu diário catalão, onde registrara minhas andanças por vários lugares da Espanha, poemas callejeros, trabalhos de freelancer e tantas coisas que havia esquecido.
Já dava esse diário por perdido, que é o destino das palavras de muitos diários: pura perdição. Agora esse achado da minha amiga voará de Barcelona até São Paulo num envelope que um mensageiro andarilho me entregará antes de perder seu emprego para a internet. Às vezes um mero acaso pode extraviar envelopes, mas espero que dessa vez o correio não seja el correo del azar.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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