Vaguei
pelas ruas e recolhi-me às nove horas. Não podendo dormir,
atirei-me a ler e escrever. Às onze horas estava arrependido de não
ter ido ao teatro, consultei o relógio, quis vestir-me, e sair.
Julguei, porém, que chegaria tarde; demais, era dar prova de
fraqueza. Evidentemente, Virgília começava a aborrecer-se de mim,
pensava eu. E esta ideia fez-me sucessivamente desesperado e frio,
disposto a esquecê-la e a matá-la. Via-a dali mesmo, reclinada no
camarote, com os seus magníficos braços nus, -os braços que eram
meus, só meus- fascinando os olhos de todos, com o vestido soberbo
que havia de ter, o colo de leite, os cabelos postos em bandós, à
maneira do tempo, e os brilhantes, menos luzidios que os olhos
dela... Via-a assim, e doía-me que a vissem outros. Depois, começava
a despi-la, a pôr de lado as joias e sedas, a despenteá-la com as
minhas mãos sôfregas e lascivas, a torná-la, - não sei se mais
bela, se mais natural,- a torná-la minha, somente minha, unicamente
minha.
No dia seguinte, não me pude ter; fui
cedo à casa de Virgília; achei-a com os olhos vermelhos de chorar.
-Você não me ama, foi a sua resposta;
nunca me teve a menor soma de amor. Tratou-me ontem como se me
tivesse ódio. Se eu ao menos soubesse o que é que fiz! -Mas não
sei. Não me dirá o que foi?
Não tive ânimo de arguir, e, aliás,
argui-la de quê? Não era culpa dela se o marido a amava. Disse-lhe
que não me fizera coisa nenhuma, que eu tinha necessariamente ciúmes
do outro, que nem sempre o podia suportar de cara alegre; acrescentei
que talvez houvesse nele muita dissimulação, e que o melhor meio de
fechar a porta aos sustos e às dissensões era aceitar a minha ideia
da véspera.
-Pensei nisso, acudiu Virgília; uma
casinha só nossa, solitária, metida num jardim, em alguma rua
escondida, não é? Acho a ideia boa; mas para que fugir?
Disse isto com o tom ingênuo e
preguiçoso de quem não cuida em mal, e o sorriso que lhe derreava
os cantos da boca trazia a mesma expressão de candidez. Então,
afastando-me, respondi:
Virgília desatou a chorar, e para não
atrair gente, metia o lenço na boca, recalcava os soluços; explosão
que me desconcertou. Se alguém a ouvisse, perdia-se tudo.
Inclinei-me para ela, travei-lhe dos pulsos, sussurrei-lhe os nomes
mais doces da nossa intimidade; mostrei-lhe o perigo; o terror
apaziguou-a.
-Não posso, disse ela daí a alguns
instantes; não deixo meu filho; se o levar, estou certa de que ele
me irá buscar ao fim do mundo. Não posso; mate-me você, se o
quiser,ou deixe-me morrer... Ah! meu Deus! meu Deus!
Estava ainda excitada; pedi-lhe que
esquecesse tudo, que me perdoasse, que eu era um doido, mas que a
minha insânia provinha dela e com ela acabaria. Virgília enxugou os
olhos e estendeu-me a mão. Sorrimos ambos; minutos depois,
tornávamos ao assunto da casinha solitária, em alguma rua escusa…
Machado de Assis, in Memórias
póstumas de Brás Cubas
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