terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Bom menino


O sol matinal entrava pela janela basculante, condensando o vapor nos azulejos e dissipando pouco a pouco o cheiro de xampu. Com as calças arriadas até as canelas, prestes a começar meu xixi, eu mirava no penico da Turma da Mônica. Ao lado, enrolada numa toalha diante da pia, minha mãe escovava os dentes.
Eu gostava muito de observar minha mãe escovando os dentes pela manhã: sua mão ia e vinha, rápida e precisa, de cima para baixo, depois fazia movimentos circulares, sem espirrar uma única gota de espuma. Tão diferente de mim, que só sabia escovar na horizontal e salpicava de branco a louça da pia, as torneiras, lambuzava o rosto inteiro. Minha mãe era tão hábil que conseguia até escovar os dentes e andar pela casa ao mesmo tempo — uma de suas façanhas que eu mais admirava. Com a mão livre, era capaz de exercer outras atividades, como tirar as roupas sujas do cesto, pentear o cabelo ou guardar uma toalha no armário. Depois, voltava para a pia e cuspia com elegância; a espuma saía da sua boca unida e silenciosa, como uma bolinha de pingue-pongue. Eu imaginava que a bola branca caía bem no meio do ralo, sem nem esbarrar nas bordas, mas sendo esse um dos muitos eventos que aconteciam a mais de um metro de altura, tinha de resignar-me à especulação.
Assistir àquele pequeno ritual de controle e delicadeza, no início de cada dia, ajudava a me acalmar. O mundo era vasto e assombroso, mas uma mulher capaz de escovar os dentes, andar pela casa e ainda exercer outras atividades certamente tinha condições de me proteger de todos os perigos, de modo que agradá-la e receber em troca seu sorriso era o que mais me importava: bastava ver seus lábios se movendo, seus olhos se comprimindo, e a paz era instaurada.
Estava tranquilo, portanto, ouvindo o som da escovação, sentindo o cheiro de xampu no ar, prestes a começar meu xixi, quando surgiu a ideia. Chamar de “ideia” é exagero, era menos que isso, apenas um beliscão da curiosidade na pança da harmonia: e se eu fizesse o xixi fora do penico? Como seria o som no chão de azulejos? Seria diferente do som grave do jato no plástico, que me lembrava um motorzinho, brrrrrrrrrr? Diferente ainda do barulho que faria se mirasse em cima do tapete colorido? E se ficasse alternando entre o penico, o azulejo e o tapete: poderia compor uma música, como naqueles dias em que a gente batucava com colheres em latas e garrafas na escola?
À medida que ia percebendo as possibilidades lúdicas do xixi fora do penico, ficava mais animado: imaginava o líquido espraiando-se pelo chão, alterando sutilmente o reflexo da luz na superfície dos azulejos; pensava que o tapete encharcado iria mudar de cor e que se quisesse poderia pintar só metade dele, ou fazer riscos em zigue-zague, como meu pai havia me mostrado na areia da praia, nas últimas férias. Quem sabe eu até saísse andando pela casa fazendo xixi em tudo? Xixi no chão de tacos, xixi no revisteiro, xixi pelas paredes, xixi escada abaixo — e, embora soubesse que meus xixis eram pouco volumosos (suficientes apenas para criar uma lâmina amarelada sobre o desenho da Turma da Mônica), a imagem que me vinha à cabeça era de uma potência infinita, um jorro ininterrupto capaz de encharcar o banheiro, afogar a casa, inundar o mundo.
Examinei o chão, o tapete, a parede, espiei minha mãe, que seguia escovando os dentes, e só então percebi, por baixo da empolgação, uma cosquinha de agonia. Algo me dizia que sair fazendo xixi sem rumo poderia deixá-la brava e aflita — e deixar minha mãe brava ou aflita era o que eu mais temia. Antes de pôr em prática os projetos que me pareciam heterodoxos, costumava me perguntar: será que a farei sofrer? Será que ela brigará comigo? Ou, do contrário, me sorrirá, satisfeita? Queria desistir, mas algo na ansiedade parecia atrair-me: sugeria haver mais coisas a se buscar nesse lugar vasto e assombroso além da calma e da harmonia do sorriso da mamãe.
O xixi já estava quase saindo, podia até sentir o alívio chegando, quando a campainha tocou. No susto, suspendi a missão. (Eu me orgulhava bastante deste autocontrole: mesmo se já estivesse no meio do xixi, poderia interrompê-lo, momentaneamente. Não chegava aos pés da capacidade de escovar os dentes e andar pela casa ao mesmo tempo, mas me divertia e várias vezes passava um tempo brincando com um jato intermitente no penico: segura, solta, segura, solta, brrrrr, silêncio, brrrrr, silêncio, e assim me sentia no domínio do meu corpo e senhor da minha vida.) Ainda escovando os dentes, minha mãe foi para o andar de baixo atender a porta, deixando-me só naquela imensidão de azulejos, com o pinto na mão e um dilema na cabeça: sorriso apaziguador ou frio na barriga?
Provavelmente, essa batalha já vinha sendo travada havia tempos, o anjinho e o diabinho me soprando desde a vida pré-uterina suas seduções e reproches, quem sabe influenciando a intensidade dos chutes no líquido amniótico ou os decibéis do choro que antecedia as mamadas, mas eram apenas as preliminares no campeonato da infância, cuja final, senhoras e senhores, se daria em instantes, e, dependendo do resultado, me classificaria em posições opostas para a grande competição da vida adulta.
Caso ouvisse os impulsos aventureiros e ignorasse os limites do peniquinho, talvez me atrevesse a saltar a rampa grande de skate aos nove, seria atacante e não goleiro no primário; perderia a virgindade antes do primeiro colegial, quem sabe fosse de carona até a Patagônia aos vinte? Se, no entanto, dedicasse meus parcos mililitros à Turma da Mônica e ao sorriso da mamãe, deixaria a rampa grande para os maiores e me contentaria em ir e vir com meu skate pela garagem, toparia ser goleiro nos campeonatos já que ninguém o faria e o professor solicitaria um voluntário; perderia a virgindade só nos estertores da adolescência e, dali em diante, preferiria os ácaros da poltrona à poeira da estrada.
É evidente que naquela manhã, com as calças na canela e o coração na garganta, eu não sabia de nada disso. Só intuía pelo forte frio na barriga que algo importante estava para acontecer. Ou não: pois assim que ouvi os passos no corredor, acompanhados pelo ronronar quase inaudível da escova indo e vindo nos dentes da minha mãe, sucumbi à promessa do sorriso e comecei a despejar no peniquinho os parcos mililitros do meu xixi, tomando cuidado para que nem uma única gota pingasse fora.
Ela terminou de escovar os dentes, cuspiu elegantemente no meio da pia, olhou para o penico, onde a Turma da Mônica nos observava sob a fina lâmina amarela, fez um carinho mentolado em minha cabeça e abriu o sorriso. Não havia nada que me ameaçasse; afinal, eu era um bom menino, eu obedecia às regras e recebia a recompensa — a ordem e a harmonia voltaram a reinar sobre a terra e o espírito de Deus a pairar sobre a face das águas.
Antonio Prata, in Nu, de botas

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