terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Capítulo 14: Aproveitando a vida – O harém – Franceses

Dali a pouco, quando nos levantamos, a gente revirou as tralhas que o bando tinha roubado do vapor naufragado e encontrou botas, cobertores, roupas e todo tipo de outras coisas, um monte de livros, um óculo de alcance e três caixas de charutos. Nunca antes a gente tinha sido tão ricos, em nenhuma de nossas vidas. Os charutos eram de primeira. A gente passou toda a tarde na mata conversando, eu lendo os livros e nós aproveitando a vida. Contei a Jim tudo o que tinha acontecido dentro do vapor naufragado e na barca e disse que isso era uma aventura, mas ele disse que não queria mais aventuras. Falou que, quando entrei no tombadilho e ele se arrastou pra subir na balsa e descobriu que ela tinha desaparecido, ele quase morreu porque achou que era o ponto final pra ele. Não era nada que tivesse conserto, pois se ele não fosse salvo, ia acabar afogado; e, se fosse salvo, aquele que o salvasse ia mandar ele de volta pra casa pra receber a recompensa, e então a srta. Watson ia vender ele pro Sul, com toda certeza. Bem, ele tinha razão, ele quase sempre tinha razão, tinha uma cabeça incomum, pra um negro.
Li muito pra Jim sobre reis, duques, condes e gente desse tipo, e como eles se vestiam com roupas brilhantes, e como afetavam grande estilo, e chamavam uns aos outros de vossa majestade, vossa graça, vossa senhoria e coisa e tal, em vez de falar senhor, e os olhos de Jim saltaram pra fora, ele tava interessado. Disse:
Num sabia que tinha tantos assim. Nunca ouvi falá de ninhum deles, quase ninhum, só do veio Rei Salumão, a num sê que ocê também conta os rei que tem no baraio de carta. Quanto ganha um rei?
Ganha? – digo eu. – Ora, querendo eles ganham mil dólares por mês. Eles podem ganhar o que quiserem, tudo pertence a eles.
Num é pândega? E o que é que eles têm que fazê, Huck?
Eles não fazem nada! Ora, que jeito de falar. Eles só andam por aí.
Não... mesmo?
É claro. Só andam por aí. Menos talvez quando tem uma guerra, então eles vão pra guerra. Mas no resto do tempo eles só ficam à toa, ou vão caçar falcões e pass... ssshhh!... ouviu um barulho?
A gente saltou pra fora e olhou, mas não tinha nada a não ser o agito da roda de um vapor, que bem de longe vinha descendo ao redor do cabo. Então a gente voltou.
Sim – digo eu – e no resto do tempo, quando as coisas tão paradas, eles fazem um estardalhaço com o parlamento, e se todo mundo não faz exatamente o que eles querem, mandam cortar a cabeça de todo mundo. Mas a maior parte do tempo eles passam no harém.
Onde?
No harém.
O que é o harém?
O lugar onde eles guardam as suas mulheres. Ocê não sabe sobre o harém? Salomão tinha um, ele tinha quase um milhão de mulheres.
Ora, sim, é assim... Eu... eu tinha esquecido. Um harém é uma pensão, acho. Quase certo que eles faz algazarra no quarto das criança. E acho que as muié brigam muito e que isso aumenta o barulho. Mas eles diz que Salumão era o hômi mais sábio que já viveu. Num credito não. Por causa do seguinte: um hômi sábio ia querê vivê num vozerio desses o tempo todo? Não... num ia querê mesmo. Um hômi sábio ia armá barulho e tumulto, e então ele ia podê acabá com a algazarra quano queria descansá.
Bem, mas ele foi o mais sábio, porque foi a própria viúva quem me disse.
Num me importa o que a viúva disse, ele num foi um hômi sábio, não. Ele tinha as maneira mais estranha que eu já vi. Ocê sabe daquele menino que ele ia cortá em dois?
Sim, a viúva me contou tudo sobre isso.
Bem , então! Essa num foi a ideia mais esquisita do mundo? Pensa um minuto. Aí tá um cepo, aí... é uma das muié; aqui tá ocê... fica seno a outra; eu é o Salumão; e essa nota de um dólar aqui é o menino. As duas qué o menino. O que que eu faço? Saio a procurá entre os vizinho e descubro qual de ocês é a dona da nota, e entrego a nota pra dona certa, tudo são e salvo, tudo o que ia fazê quarqué um com valentia? Não... eu pego e rasgo a nota em dois pedaço, e dô uma metade procê, e a outra metade pra outra muié. É isso o que o Salumão ia fazê com o menino. Agora pergunto procê: que adianta metade de uma nota? Num dá pra comprá nada com ela. E que adianta metade de um menino? Eu num ia dá a menó bola nem prum milhão deles.
Mas ora, Jim, ocê não entendeu a ideia... dane-se, ocê errou o alvo por uns mil quilômetros.
Quem? Eu? Ora, vá. Num fala pra mim das tua ideia. Acho que eu enteno o sentido quano eu vejo sentido, e num tem sentido em fazê uma coisa dessa. A briga num era sobre metade de um menino, a briga era sobre um menino inteiro. E o hômi que pensa que pode resolvê uma briga sobre um menino intero cum a metade de um menino num sabe o bastante nem pra num se molhá na chuva. Num me fale desse Salumão, Huck. Conheço ele de trás pra diante.
Mas tô dizendo que ocê não entendeu a ideia.
Que se dane a ideia! Acho que sei o que sei. E olha aqui, a ideia de verdade vai mais longe... mais profundo. Tá no modo como Salumão foi criado. Ocê pega um hômi que só tem um ou dois fio, esse hômi vai esbanjá os fio? Não, num vai, num tem como. Ele sabe como dá valô a eles. Mas ocê pega um hômi que tem uns cinco milhão de fio correno pela casa, aí é diferente. Ele vai cortá um menino em dois assim como corta um gato. Tem muitos fio mais. Um fio ou dois, mais o menos, num importa pro Salumão, que se dane!
Nunca vi um negro assim. Se ele metia uma ideia na cabeça, não tinha como arrancar fora. Era o negro mais crítico de Salomão que já vi. Então continuei a falar sobre outros reis, e deixei Salomão pra lá. Contei sobre Luís XVI, que teve a cabeça cortada na França muito tempo atrás, e sobre o menino dele, o delfim, que ia ser rei, mas eles pegaram e prenderam ele na cadeia, e uns dizem que ele morreu na prisão.
Pobre menino.
Mas uns dizem que ele saiu, fugiu e veio pra América.
Inda bem! Mas ele vai se senti muito sozinho... num tem rei ninhum por aqui, né, Huck?
Não.
Então ele num vai tê uma profissão. O que é que ele vai fazê?
Ah, não sei. Uns deles vão pra polícia, e uns ensinam as pessoas a falar francês.
Ora, Huck, os francês num falam assim como a gente?
Não, Jim, ocê não ia compreender nem uma palavra do que eles dizem... nem uma única palavra.
Ora, c’o diabo! Como é que isso acontece?
Não sei, mas é assim. Peguei um pouco da parolagem deles num livro. E se um homem viesse falar com ocê e dissesse Pallê-vu-francé – o que ocê ia achar?
Num ia achá nada, eu pegava e rebentava a cabeça dele. Qué dizê, se ele num fosse branco. Eu num ia deixá ninhum preto me chamá assim.
Balela, não tá te chamando de nada. Tá só perguntando se ocê sabe falar francês.
Então por que num fala isso?
Ora, ele tá falando isso. É o jeito do francês falar isso.
É um jeito danado de ridículo, e num quero ouvi mais sobre isso. Num faz sentido.
Olha aqui, Jim: um gato fala como a gente fala?
Não, um gato não.
E uma vaca?
Não, uma vaca também não.
Um gato fala como uma vaca, ou uma vaca como um gato?
Não, num fala.
É natural e correto eles falarem diferente um do outro, não?
É craro.
E não é natural e correto um gato e uma vaca falarem diferente de nós ?
Ora, craro que é.
Bem, então, por que não é natural e correto um francês falar diferente de nós? Agora me responde isso.
Um gato é um hômi, Huck?
Não.
Então, num faz sentido um gato falá como um hômi. Uma vaca é um hômi? E uma vaca é um gato?
Não, nenhum dos dois.
Então, ela num tinha por que falá como um ou como o outro. O francês é um hômi?
Sim.
Então! Macacos me morde, por que ele num fala como um hômi? Me responde isso.
Vi que não adiantava gastar palavras... [...]. Então desisti.
Mark Twain, in As Aventuras de Huckleberry Finn

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