sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

A jovem que desejava entender a utilidade

Assim que entrei na sala, ele apontou para a mesa.
O que tem aí?
Um copo.
Para que serve?
Para beber.
Ele inverteu a posição do copo. Colocou-o de boca para baixo.
E agora? O que é?
Continua sendo um copo. A ordem dos fatores não altera o produto.
É o que você pensa.
Não é o que penso. É o que é!
Um copo? Sim? Mas olhe. Não tem boca. Não tem fundo! Portanto, é um objeto inútil.
Ah, quer me provar que a definição das coisas depende da posição em que se encontram?
Não me respondeu. Foi até um armário, trouxe uma colher.
O que é isto?
Uma colher.
Para que serve?
Para comer.
Mas se não houver comida, é um objeto inútil?
Claro!
E se é um objeto inútil, por que todas as pessoas têm em casa gavetas cheias de colheres, garfos, facas? Tem pessoas que compram faqueiros caríssimos, vários faqueiros, de prata, aço inoxidável. Até de ouro. Por quê?
Em certos momentos esses objetos são necessários.
Ele não estava me irritando. No fundo eu estava curiosa para ver onde ele ia chegar. Tínhamos marcado a entrevista para saber se eu era qualificada para o emprego. A secretária tinha avisado: “Seja pontual. Não chegue nem um minuto depois, nem um segundo antes. Chegue no horário previsto.” Combinei com ela, acertamos nossos relógios, da mesma maneira que se faz em filmes, quando um bando vai roubar um banco e a ação tem de ser cronometrada.
Você está afirmando que parte do nosso tempo é composta por momentos inúteis. De que maneira poderíamos tornar úteis esses momentos?
Não sei! Nunca tinha pensado nisso, estou embaraçada. Vim apenas fazer uma entrevista para obter um emprego.
O emprego é esse! Descobrir os momentos úteis e os inúteis. Eliminar os inúteis, para dar sentido à nossa vida.
Agora, eu estava começando a ficar confusa. Que diabo de emprego seria esse? Qual a minha função, se é que eu teria a vaga. Lá fora, uma fila imensa rodeava o quarteirão, contornava a praça. Cada um com a sua senha, onde estava marcado o horário.
Compreendeu a sua missão?
Ainda não.
Assim é impossível trabalhar. Tenho um mundo de gente a atender ainda hoje. É preciso ser esperto. O que é isso?
Uma mesa, claro.
Ele curvou-se, arrancou os pés da mesa.
E agora?
É uma tábua.
O que posso fazer com ela? Pode me servir de mesa?
Se for em um restaurante japonês, todos sentados no chão.
Falo deste mundo ocidental em que vivemos.
Bem, isso é apenas uma tábua. Pode ser serrada e transformada em qualquer outra coisa.
Você está me dizendo que os objetos podem ser reciclados?
Podem.
Posso transformar essa tábua em um copo?
Impossível!
Portanto, nem tudo pode ser reciclado.
Nem tudo.
Portanto…
Portanto o quê?
Eu é que pergunto: portanto?
Portanto não é pergunta.
Não posso usá-la em uma indagação?
Por que não usa outra palavra? Por enquanto, no entanto?
Têm o mesmo significado?
Nada tem significado algum. Nós é que damos significados às coisas. Portanto, cada coisa é aquilo que eu quero que seja.
Acho que vai ganhar a vaga.
Mas uma vaga tem que estar desocupada. Para ser vaga. Ser útil. Ter sentido.
Portanto…?
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras Proibidas

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