Pois
não é que quis descansar as costas, por um dia? Sabia que se
falasse isso ao chefe ele não acreditaria que lhe doíam as
costelas. Então valeu-se de uma mentira que convence mais que a
verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não poderia trabalhar
porque arrancar um dente era muito perigoso. E a mentira pegou. Às
vezes só a mentira salva. Então, no dia seguinte, quando as quatro
Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida
uma coisa a mais preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela.
Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem uma palavra era ouvida.
Então dançou num ato de absoluta coragem, pois a tia não a
entenderia. Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava:
l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente conseguida solidão, do
rádio de pilha tocando o mais alto possível, da vastidão do quarto
sem as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um pouco de café
solúvel com a dona dos quartos, e, ainda como favor, pediu-lhe água
fervendo, tomou tudo se lambendo e diante do espelho para nada perder
de si mesma. Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até
então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na vida,
pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada. Até
deu-se ao luxo de ter tédio — um tédio até muito distinto.
Desconfio um pouco de sua facilidade inesperada de pedir favor. Então
precisava ela de condições especiais para ter encanto?
Por
que não agia sempre assim na vida? E até ver-se no espelho não foi
tão assustador: estava contente mas como doía.
– Ah
mês de maio, não me largues nunca mais! (Explosão) foi a sua
íntima exclamação no dia seguinte, 7 de maio, ela que nunca
exclamava. Provavelmente porque alguma coisa finalmente lhe era dada.
Dada por si mesma, mas dada.
Nesta
manhã de dia 7, o êxtase inesperado para o seu tamanho pequeno
corpo. A luz aberta e rebrilhante das ruas atravessava a sua
opacidade. Maio, mês dos véus de noiva flutuando em branco. O que
se segue é apenas uma tentativa de reproduzir três páginas que
escrevi e que a minha cozinheira, vendo-as soltas, jogou no lixo para
o meu desespero — que os mortos me ajudem a suportar o quase
insuportável, já que de nada me valem os vivos. Nem de longe
consegui igualar a tentativa de repetição artificial do que
originalmente eu escrevi sobre o encontro com o seu futuro namorado.
É com humildade que contarei agora a história da história.
Portanto se me perguntarem como foi direi: não sei, perdi o
encontro.
Maio,
mês das borboletas noivas flutuando em brancos véus. Sua exclamação
talvez tivesse sido um prenúncio do que ia acontecer no final da
tarde desse mesmo dia: no meio da chuva abundante encontrou
(explosão) a primeira espécie de namorado de sua vida, o coração
batendo como se ela tivesse englutido um passarinho esvoaçante e
preso. O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram
como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam. Ele a
olhara enxugando o rosto molhado com as mãos. E a moça, bastou-lhe
vê-lo para torná-lo imediatamente sua goiabada-com-queijo. Ele...
Ele
se aproximou e com a voz cantante de nordestino que a emocionou,
perguntou-lhe:
– E
se me desculpe, senhorita, posso convidar a passear?
– Sim,
respondeu atabalhoadamente com a pressa antes que ele mudasse de
ideia.
– E,
se me permite, qual é mesmo a sua graça?
– Macabéa.
– Maca
— o
quê?
– Bea,
foi ela obrigada a completar.
– Me
desculpe mas até parece doença, doença de pele.
– Eu
também acho esquisito mas minha mãe botou ele por promessa a Nossa
Senhora da Boa Morte se vingasse, até um ano de idade eu não era
chamada não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser chamada em
vez de ter um nome que ninguém tem mas parece que deu certo —
parou um instante retomando o fôlego perdido e acrescentou
desanimada e com pudor — pois como o senhor vê eu vinguei... pois
é...
– Também
no sertão da Paraíba promessa é questão de grande dívida de
honra.
Eles
não sabiam como se passeia. Andaram sob a chuva grossa e pararam
diante da vitrine de uma loja de ferragem onde estavam expostos atrás
do vidro canos, latas, parafusos grandes e pregos. E Macabéa, com
medo de que o silêncio já significasse uma ruptura, disse ao
recém-namorado:
– Eu
gosto tanto de parafuso e prego, e o senhor?
Da
segunda vez em que se encontraram caía uma chuva fininha que
ensopava os ossos. Sem nem ao menos se darem as mãos caminhavam na
chuva que na cara de Macabéa parecia lágrimas escorrendo.
Da
terceira vez em que se encontraram — pois não é que estava
chovendo? — o rapaz, irritado e perdendo o leve verniz de finura
que o padrasto a custo lhe ensinara, disse-lhe:
– Você
também só sabe é mesmo chover!
– Desculpe.
Mas
ela já o amava tanto que não sabia mais como se livrar dele, estava
em desespero de amor.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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